Diários de Taizé - 2014
Jaz num sono eléctrico, aqui ao meu lado, o caderno negro que trouxe de França quase cheio. A sua presença só enche-me a ansiedade. A consumação do que está escrito implica editá-lo e publicá-lo, mas tenho medo de o abrir e começar a transcrevê-lo. Porque fazê-lo é reviver o que senti dolorosamente bastante - e agora pela sua metade e a frio, como quem olha para uma cena de porrada da sua varanda. E fico num limbo de desagrado, nervoso com a goela seca, por sentir as coisas todas nos seus restos e por já só sentir os seus restos, um paradoxo infernal de martírio e luto. Talvez saiba o que fazer assim que descansar um pouco mais, assim que me entre novamente no corpo a cadência dos dias regulares - a cadeira de sempre, a janela de sempre, o olival de sempre.
Agosto de 2014
27/7/2014
Tenho as ideias cansadas e encontro-me só. Desabituei-me da solidão e agora sou uma cria de animal desmamada bruscamente. Não procuro, assim, culpar quem seja por ter vivido sentimentalmente acompanhado desde tão cedo (e eu sei quão tarde chegaste) e ter criado a ilusão de que me poderia balouçar no trapézio, indefinidamente e sem medo, como se agora culpasse o fogo do frio que espanta no inverno. Sinto a mais ferrugenta das desilusões dilacerar-me por dentro, por toda a ingratidão que acho representar, uma tal que nunca cheguei a sentir sequer perante a vida e querer terminá-la eu.
Sinto não te ter dado o suficiente, sequer o aceitável, sequer o justo. Que fui sempre algo que achavas amar como se guarda um amuleto e que eu não fui capaz de te trazer sorte. Sinto, agora, a culpa irremovível de ter, distraído, achado luz em outro lado, de ter feito até o mínimo esforço para lá de ti. Nunca te soube dar o que a tua disposição pede. Creio, portanto, que te usei sem te poder oferecer algo justo em troca de me dares ânimo de vida. Sinto e conheço, agora, que vivo uma penitência e uma dívida perpétuas, e que, como tu não sabes olhar para mim agora, igualmente eu nunca soube olhar para ti conformemente.
Turva-se-me a vista a regar estas palavras tão secas, tão usuais. Espanta-me até a mim a incapacidade de levar friamente de uma ponta à outra este assunto. Prova maior de que não passo de um falso profeta - o decalque vergonhoso de uma alma sensível num corpo inadequado. Tomaste-me como a um orfão e sinto-te verdadeiramente mais eu que qualquer parte de mim. Como se a noção minha de uma felicidade só se visse consagrada fazendo-te rir. Eu não quis nada disto. (Não me oponho, todavia, à ordem suspeita das coisas.)
Proponho-me, por violenta imposição de uma insaciabilidade que súbito vi crescer em mim, à especulação fria de promessas de cura para este mal-estar de solidão - que eu próprio me infligi, talvez como pousio. Pior será de nada enfim se cultivar, se me acabar por ganhar urtigas por descuido.
Eu não me sei aproveitar. Sinto como um pânico o ter que me conceder à subjectividade do que será a melhor parte. Não me tolero sozinho. Como um escultor que ficasse sem mãos, estar sem alguém é para mim dar inutilmente com os cotos no mármore. A percepção violenta de que, sem ti, seja lá quem fores já, mas especialmente tu, que o foste tanto tempo, que sem ti mais vale não ter voz, que deixe de contactar às coisas, passando tudo a um esforço ridículo de humilhação largamente pressagiada. As saudades que sinto não são só a ressaca de um uso permanente, mas a descompensação física de um sítio onde até o vexame fazia sentido.
Não havia uma resolução pacífica. Encomendo agora todas as minhas acções futuras, decisões e o espírito todo ao perigo de me afogar em mar alto - eu que não sei rezar por nunca ter andado embarcado.
Há, talvez, cabos que nunca se deva dobrar, por muito que se possa. E não é, queria eu que fosse, apenas o pessimismo característico a falar, a redução, ao absurdo, de uma situação pelo seu desfecho menos favorável. Quem dera que eu assumisse todas as minhas acções como certas. E se não como certas, ao menos como optimisticamente prováveis, pelo valor único de eu as ter levado a cabo.
Sinto o nojo de quem lê isto tudo, como é certo eu sentir isto tudo. Mais o pânico de ser entendido, seja por admiração, paixão ou semelhança. O pânico de existir só se confiado a alguém e o peso da escolha pesar-me a mim.
O descaramento com que o mundo se alheia das minhas questões, sendo-o eu ele próprio enquanto (o) viver. A sobranceria com que a ordem das coisas não cessa de se desordenar o mínimo que fosse para me dar algum tempo, alguma margem de manobra, só uns minutos para recuperar o fôlego. Agir, enfim, num contra-relógio de uma paixão condenada, pela simples embriaguez de não saber abdicar - e de algo vivido só platonicamente não me parecer minimamente vivido. Aonde foi a doutrina a que me propus? Desfez-se ao mínimo fascínio num estrelajar histérico de cores e sensações infantis. Desconfio da vida como todo o mendigo deve duvidar de uma esmola grande. Corri a agarrar, antes que a vida mo tirasse à traição como parte de um jogo de troça. Seria igrato duplamente se o considerasse, agora, um erro. E mais facilmente nisto tudo escolheria que olho me haveriam de vazar, que mão me haveriam de amputar, que filho me haveriam de levar.
Sinto a falta de um peito como uma criança de colo. A mais leve recordação de um carinho escangalha-me a postura, e se sinto fortemente que nada faz mais sentido que ceder a tais dolorosos impulsos, não poderia com mais urgência pedir à vida que me privasse de sentir o que fosse, que tirasse as cores à vida e tudo o resto, que me tornasse só interpretação sem a selvagem necessidade de emoções. Como eu desejo inutilmente deixar de sentir, deixar de danificar colateralmente só por se existir - como eu abomino a vida social e me rio de mim mesmo do estardalhaço que causo ao tentar levar uma vida discreta e de como uma vida se enche de todas estas situações e se vê assim comprometida e de como me espanto, enfim, de conseguir viver (salvo seja) paralelamente a tudo isto. Como eu gostaria de me esquecer da vida como consigo esquecer-me a intervalos das mesmas coisas nenhumas que a compõem. Somos só frágeis relações sentimentais. Só, como as estrelas quase invisíveis, sendo cada uma um sol.
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Eu sei só como é triste não ser as sensações que vêm da tua língua, os teus olhos a olhar-me, a força difusa de formigueiro que a chuva inflige ao cair. Eu sei só como é triste sentir-me complacentemente cativo de um corpo que não pedi, que visto ajoujado, feito por um alfaiate indiferente. Estou como bêbado ou sonhando. Tudo nisto é irrisório porque não me parece fiel, antes um teatro à espera que alguém, num ataque de piedade, irrompa num aplauso que me afiance que a farsa terminou.
Cheguei hoje a um destino literal e conhecido, sem outro propósito que não o de estar sozinho. Não esperava, tolo, que fosse tão incomportável chegar já sozinho de vespéra a um sítio que se quer exílio breve. Cada vez mais me é urgente o fim da palavra para o entendimento completo. Eu quero saber inverter-me para dentro de ti, ser o dobro de tudo na unidade, deitar-me por sobre ti e deixar-me olhar-te nos olhos sem tempo e por aí me derreter para dentro da tua bondade acolhedora. É pelos olhos que me transbordo, é por eles que me denuncio por serem a única constante em mim.
O resto trago escrito nos ossos, visível já só depois de qualquer possível julgamento e castigo.
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Deixem-me estar aqui, a passar fome de tudo e para sempre. Esquecer tudo o que me relaciona com a vida comum: família, amizades, laços ténues, cidadania. Tornar a minha vida um álibi dela própria.
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A ideia de ir dormir apavora-me mais que o desânimo de estar acordado. Voluntariamente dar o fim ao dia, apressando o próximo, inquieta-me. Saber que vivo de bem com a exigência vil de alma que te quer obrigar a não largares o sentimento que tens por mim enche-me de remorso assassino. Não tenho jeito de estar, nem no fingimento prático.
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Acto de contricção:
Dói-me mais o prejuízo que causo à sensibilidade alheia que o que causo à minha integridade. Não por santificado altruísmo de calvário, mas por um insustentável remorso de implicar estragos para lá de mim, a quem por defeito me confiou a vulnerabilidade do que sente.
28/7/2014
[omnia fui, nihil expedit]
Sinto uma angustiante secura de alma, que me inibe tanto a produção sistémica de traduções sentimentais, quando a casualidade tímida dos protocolos automáticos a que me vejo obrigado (os quais, confesso, me dão um certo sádico prazer, como Ulisses que se vestiu de trapos para não ser reconhecido, eu ajo-me de trapos para não ser entendido). Estou já abúlico de uma maneira urgente, que me impede o fingimento e me entristece, como um relógio artesanal e ornado a ouro e gemas, que se visse, de súbito, tornado chocalho de bebé. Ao menos que as metáforas mais tolas se realizassem - ao menos que sim, que fosse brinquedo de criança. Toda a minha vida me foi puramente denecessária. Duplamente: porque desnecessárias são todas, mas eu o sei.
Já sei só ter fome e sede e é já somente isso que me anima, como a qualquer bicho. Tenho já só esse pulsar primevo nos actos, mas ainda entendo tudo. Abaixo do pescoço sou todo apêndice.
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Solto um pranto que me vem do quanto me espanta esta falta de conforto. Adivinhar tudo o que não se repetirá de nós. Não enxergo para lá de me sentir assim, fatalismo que floresce da cicatriz umbilical que ficou de tudo isto. Sinto-me naufragado numa noite sem lua, respirando enquanto der.
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Ao olhar o céu daqui, nocturno, limpo, pingado de inúmeras ardentes estrelas, sinto, todavia certo, que me escondo por detrás de uma ridícula incapacidade. Não será, necessariamente, o reconhecimento da minha pequenez - não sinto qualquer aflição perante o universo, ele que se entenda com o infinito que é. O que sinto é, precisamente, a aparição fria da minha finitude insuficiente. Ao olhar o céu negro sinto o mesmo que ao olhar o meu entender claro das coisas. Que por mais anos que passassem nunca poderia contar os astros todos (pior, se os contasse, entender a magnanimidade do número), que a sua posição mudaria, que me engasgaria na contagem, que tropeçaria, míope, num baralhar de somas. Sou eu assim e o meu entendimento, capaz só de apreciar relativamente, nunca de chegar sequer às fronteiras do absoluto todo, tendo-lhe, todavia, a sua noção perfeita.
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Relendo coisas minhas de antes, reconheço que não tenho já ideias importantes, esclarecidas, axiomáticas, como julgava ter e postulava. Seja, talvez, um humildecer de alma ou um empobrecimento do ânimo. Perdi a vontade de parecer sapiencial a todos os que me lêem, inexistentes quase. Escrevo já só como quem reza, orando para sentir o efeito temporário de tornar tolerável a ideia do porvir. Escrevo como uma eutanásia que seja só uma noite de sono tranquilo.
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A chuva caiu hoje de manhã como um desmoronar. Causa-me na alma a dor inteligivelmente abstracta um transtorno menor que aquele que me causa o facto de todos os caminhos serem agora só poças e lama. É essa a verdade. Mas como escrever de poças e lama? Sinto mais o escaldar da minha língua quando bebo café demasiado quente que esta esta vontade de me anular da vida - não morrendo, mas, subitamente, e sem qualquer consequência, o destino ter-me poupado a existir. Só posso medir a dor de tudo em danos práticos. E a minha histeria lírico-pessimista nada interessa quando tenho os sapatos enlameados, as meias encharcadas e os pés frios.
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Fazer amor contigo é o mais próximo que tenho de rezar sem qualquer cinismo. Ir até ti como quem se bendiz, tomar os sumos que deitas como quem consagra. Toda a boca larga e carnuda que me diz
- Tomai: bebei e comei.
Renovo a minha fé sempre que me recebes.
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Meditava muito sobre uma consideração que achava só me chegar por via de uma necessidade animal, a de ter um filho.
O argumento, para não o ter, seria escusá-lo da vida. Mas aí privaria-o, por antecedência, de julgar por ele próprio. Depois lembrei-me que escrevo coisas em cadernos, e, tirando o esforço e as diferenças orgânicas, chega quase a ser um só mesmo. Escrever livros e ter um filho são ambas maneiras de projectar uma sombra para lá de nós, colocar alguns indícios de nós, através deles, no futuro que não é nosso, se pensarmos nisso o suficiente, e não virmos num filho mais que uma obra que se vai fazendo até que o mundo a toma por sua.
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Outro dia vi o amanhecer da janela do meu quarto. Um cobertor de nevoeiro baixava sobre o pinhal e toda a luz parecia trazer quebranto e presságio de coisas graves. A falta de vento, mas a consciência da humidade na minha pele, pareceu entorpecer toda esta hora e, lá na minha janela, senti viver-me a vida toda, abismando-me entre mim e mim, naquele cenário parado. Ouvia-se só o burburinho dos primeiros pássaros, que profetizavam mais, sinto-o agora, que muitas línguas estrangeiras faladas bem. Decidi sair dali, com um suspiro casual e um encolher de ombros - dali, da minha janela, onde percebi a vida toda - que é como tenho saído de todos os decisivos momentos da minha vida, e deitar-me na cama. Não me recordo de sonhar em todas as horas que dormi, depois.
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Sentir todos os infortúnios práticos como uma forma precoce de despachar já as ninharias da vida comum.
Sentir já as humilhações de uma traição, a angústia da perda e o martírio das saudades - tudo, com pressa.
Calejar da vida que vivo com os outros, para mais tarde não me distrair do que vivo comigo.
29/7/2014
Toda a minha vida acolitei somente. Quis a ironia exangue da vida que fosse, realmente, educado na fé católica, servindo o ofício de acólito durante alguns anos. Foi talvez presságio frio - irónico - do que estaria guardado para mim. Poderia, também, ser o Destino a preparar-me para para o que estaria guardado para mim. Mas eu não acredito no Destino. Acredito só que reconhecemos a experiência quando ela é útil. E toda a experiência é uma estafa. Nem todo o sofrimento serve um propósito e só servirá quando ele chegar. É do maior cinismo confortar o que sofre com hipóteses. Todavia, é, também, ternurento, aquele que sofre o sofrer e não o trata como produto de si. Ternurento como uma criança que suja o fato domingueiro numa poça que não previu tão funda.
Sinto-me a segurar um castiçal perante a vida ritual de quem passa, alumiando só simbolicamente as tristes e encomendadas existências. Não tenho engenhos para a vida que não sejam a impossibilidade que é ter a glória de tudo o que não faço. Sinto que a tinta desta caneta organicamente brota de mim e que, como negra que é, só pode escrever as noções turvas dos maremotos que tenho na ideia. Tudo termina no prazer vão de ser lido. Tenho o desejo secreto de deixar este caderno perdido na mesa de uma esplanada ou num banco de jardim, mas sentiria a sua perda - apesar da nobreza estóica do gesto - como a morte de alguém querido. Sou o sacerdote de uma igreja apocalíptica que pratica o exacto oposto daquilo que doutrina.
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É nestas horas mortas que constato debilmente que possuo, de facto, uma fé. É um impulso só e não falo da fé que tenho no que escrevo. Uma crença que se baseia em descrer, em duvidar sempre, não como quem aplica um método, não como quem desconfia, mas a duvidar como os teimosos - “talvez não se morra”, “talvez o amor não se dissipe”.
Uma fixação santomeica em nunca crer absolutamente no resultado mais provável, porém sentido dolorosamente a sua inevitabilidade. (Somos imortais até morrermos.) Vivo, assim, uma iluminação desconfortável nestas horas mortas. Não as procuro, mas vivo para elas. Todas estas noções, melhor ou pior descritas, são dúcteis como um fio de cobre e trazem o sabor férreo de como quando se mordem os lábios, ao constatar que, virtualmente, tudo se pode.
Tudo o que digo é tão pouco e como queria antes ser a chuva que vejo cair-se daqui até às colinas que me tapam o horizonte; ser assim abrangente, um manto reflectido de tudo, cuja única obrigação se reduz a cair. E saber que essa chuva tem mais efeito prático no correrio do mundo que qualquer Verdade inadvertida que eu, sem notar, escreva. E tomar cada verdade que reconheço após o ponto final como um apocalipse individual, arrebatamento só meu, levantar os olhos do caderno e a vida ainda continuar: é como se me cuspissem na cara. O descaramento de a regular existência da vida continuar impávida para lá de mim. E é aí que duvido dos que escrevem que a vida são só as nossas sensações.
Não me sinto receber algo da vida como sente o gato que se derruba no terraço a receber sol; sinto-me, sim, incapaz de fazer os outros, todos, levar algo de mim. Imagino-os em conjunto como pequenas partes de uma grande máquina, um organismo dantesco e parasítico de si próprio, que existe inteiramente para meu prejuízo, sem qualquer distinção de partes. Vejo-os todos iguais, só com o propósito de me atrasar a vida, de me frustrar as ambições. Porém nunca me enformo nativo, sem algo que me ligue a esse sistema corrupto que o fizesse. Sou um estrangeiro em todo o lado porque em todo o lado me sinto a visitar. Os cegos das ideias coroaram-me porque vejo, mas eu sinto profundamente a minha míopia de alma como uma maior cegueira que a deles, porque a esperança é um membro gangrenado impossível de amputar.
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As figuras da minha infância - sendo a maior a minha avó, depois cada velhinho que cruzava na sacristia ou no adro da igreja, também o padeiro, na sua volta diária, o peixeiro, na sua volta semanal - todos os vejo a definhar do meu sítio impotente. Se voltar à igreja, o que me vai doer não será a falta de ter um deus a quem rezar, mas todos os habituais lugares agora vazios, efígies, monumentos gelados à morte. Nunca mais ouvir o “ora o que é que vai ser?” do Sr. Acácio, quando desde que me lembro que a conta do pão era sempre a mesma, nunca mais lhe receber o troco das mãos, ter sabido da sua morte inesperada num telefonema curto para Lisboa, onde me alheio disto tudo e não tenho o sino da minha aldeia a assegurar-me, no escuro do quarto, que o mundo está intacto lá fora. O Sr. Abel, cuja falta maior se nota na qualidade do carapau, lápide que ache digna o bastante para o ofício célere que levava, caiu acamado com um tumor cerebral. A minha avó, senil já há largos anos, que no outro dia me tomou pela mão e me exigiu que a levasse ao médico, por via de agora se esquecer das coisas e dos nomes das pessoas.
Foi o soco mais irónico que a vida já me deu. Tudo isto me lembra só que vou morrer e apavora-me só isto não me apavorar. Que frieza é esta perante a ideia tão presente da morte? E pior que da morte, da velhice humilhante que nos traz joguetes da vida quando ela precisamente nos deve tudo. Antes de vir para cá, visitei a minha avó, que me disse, ao despedir-se, num raro momento de lucidez (tão raro e mais genuíno que qualquer um dos meus), que talvez fosse aquela a última vez que me veria, que não se sentia nada bem. Senti um calafrio por mim todo. Verdadeiramente terá sido a única coisas que senti faz já largo tempo - e foi raiva. Raiva perante a haver uma tão latente noção de morte em alguém já não sabe o nome do neto que criou, que seja isso, de todas as coisas que não esqueceu, que lhe atormenta a cabeça fraca. E todos quantos vejo a seguir a sua vida sem sequer se recordarem que tudo tem um fim, é deles o meu maior esgar de asco. Não escrevo salmos à morte, nem pretendo ditar epicuristas (o carpe diem é um positivismo [em método], que dessa maneira se consome a ele próprio) a quem for que me leia, mas que o fim, não sendo o propósito, é um prazo a cumprir, e há que cultivar o nosso jardim.
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Vivo tantas vidas na antecipação de pedir um cigarro. Imagino-me abordando o fumador das maneiras mais dispersas, amigavelmente, umas mais formais, outras mais toscas, a medir o ângulo do sorriso falso e a postura do corpo e a posição das mãos; talvez mentir, arranjar uma razão para evitar um não, as engenharias certas da posição dos pés e do queixo, o olhar nos olhos para estabelecer sociabilidade; enfim, imagino-me fumando o cigarro, todos os travos suaves, o sabor do fumo e da folha, a dormência nas pálpebras e nos extremos de mim, dois momentos de sonho que imagino com regalo. E a oportunidade passa ou acho que não vale a pena (como assim passo pela vida) e fico sem o cigarro que nunca tive. Volto para a ideia de fumá-lo como quem volta a casa e fico lá até o sol se descobrir por detrás de uma nuvem grossa que o vento carrega; aí acordo, de verdade, e resigno-me.
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Discuti, hoje, amigavelmente, com um desses cristãos de espírito sitiantemente missionário, que abertamente me denunciou a impossibilidade prática das minhas escolhas políticas. Nada de novo. Denunciei-lhe, porém, a mesma coisa, todavia acrescentando que, ao contrário dele, o carácter utópico do comunismo vem, sobretudo, da preguiça, enquanto que o do cristianismo não provém de um pecado, mas da própria falibilidade da natureza humana. Amar o próximo, inquestionavelmente, como a nós mesmos, quando amar-me a mim mesmo é (seria) doloroso, visto que não me confio. “Amai-vos uns aos outros” - possível só se toda a humanidade acordasse amanhã, e perpetuamente, levemente embriagada. O próprio fim do cristianismo é aborrecido, porque é colectivo. O do comunismo também, mas esse é prático. O fim a que o cristianismo se propôs só faz sentido individualmente, como as crenças pagãs e budistas, mas a religião organizada tornou-o num ideal de massas. No comunismo é a vida que se partilha - e essa não vale nada. O esforço prático deve ser usado no sistema melhor. Na religião (vulgo espiritualidade, misticismo, superstição, o que seja) e no pensar, é o que resta do que é prático na vida que importa - e isso vale tudo. E não se pode partilhar.
Falei mais do que ouvi. Depois comentámos a chuva e os filmes melhores que vimos desde a última vez que estivéramos juntos. Penso que fiz sentido e deve ter sido disso que me exaustei.
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Nunca fui sincero e quase tenho vergonha naquilo que escrevo - como teria de algo escrito com quinze anos, mas logo após escrevê-lo. E quando sou sincero não é comigo, porque comigo não consigo fingir ser sincero. Não digo que minta, pois não minto, mas o que é sincero em mim é só o sentido prático de despachar a situação da maneira que menos ondas cause ao pequeno charco da minha vida, usando de todas as noções de moral, ética e ontologia que fui acumulando (alguma coisa se leva da vida). As decisões maturadas nunca são sinceras.
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Vou dormir como quem perdeu um o dia, não havendo como ganhá-lo, da maneira mais discreta. Adormeço, de novo, não só subordinado às leis naturais, inevitáveis, como subordinado às vontades femininas, perfeitamente evitáveis. Culpo o ser-me tão jovem não haver mais vontade. Mas é isso que sou, algo que só existe, praticamente, se engrenado em algo, se não mais forte, mais enérgico ou mais distraído. Sem quem me leve pela mão estou na vida como uma criança que se perde na multidão de uma gare.
30/7/2014
O meu pensamento está irrequieto de ideias inúteis, inundado de um caldo morno e turvo que sinto causar ondas ao caminhar. Não consigo um sofismo claro, uma metáfora limpa. Não estou para a substância nem para o estilo. Tenho em mim a vontade de uma bebedeira e de avulsos cigarros em larga companhia, sem a dita sombra pesada da substância e do estilo nos meus ombros, que agora sinto sair a ferros. Sinto os olhos por detrás dos olhos moverem-se como moscas no ar, num flutuar impesável de movimentos brutos, a intolerância da calma numa efeméride perpétua. Sintos os olhos de facto inundados de cansaço físico que me assalta de nojo. A incrível necessidade de dormir e o prazer que tenho nisso. A clareza de espírito que só me traz o deitar-me ao comprido na cama, cada vértebra estalando num susto, os olhos, abertos, que descansam no escuro. Tudo isto me repugna na manhã seguinte, como se tivesse tomado a amante errada. Flagelo-me destas distracções, mas se me penitencio é a mim próprio, que a minha disciplina é castigar-me por ser indisciplinado, outra vez como as moscas, que cabeceiam contra a janela. Quando lá poiso a cabeça, a almofada lateja-me sussurros infernais de desafio. A cadência dormente da chuva, como eu queria ser só ela e não ter sono, chegar como um vento de norte e não entender nada.
Vou-me bastando a lama espessa que fica das primeiras abertas, a inconsistência estética que é uma rua molhada num dia de sol.
Veja-se como tudo isto me sai a custo dos dedos, como estas ideias são destiladas de um produto velho e sem efeito; o achar-me de uma estirpe superior e cometer a volúpia de me odiar. Devenir immortel et, puis, mourir.
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Tudo em mim é por preguiça. O ateísmo, que teimo anterior à ideia de deus, é só uma maneira de ignorar todas as complexidades da ciência com a própria ciência, guardando-a para os outros, e um jeito de simplificar a minha descrença num sentido para a vida. O meu estoicismo medíocre, para além de preguiça, é uma mentira em que se vive de peito cheio sem realmente chegar a um fim. O meu pessimismo é um contra-optimismo: achar o pior para não ter que justificar o melhor. O meu comunismo é ter nascido pobre e sem engenho nas acções, tendo a capacidade de tudo, para enriquecer.
Ofereci-me ao que me desse menos trabalho (quase tudo teorias). Cultivei uma indiferença à vida e achei-lhe os nomes certos para os outros me chamarem intelectual em vez de calão. Faço-me mais incapacitado do que sou e escrevo pelo pouco incómodo que isso me causa.
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Cada vez que escrevo é como se fizesse a tradução obscura de um autor estrangeiro, pátrio de uma língua complexa com poucas equivalência na que falo. É quanto se perde nesta tradução possível do que acho espalhado por dentro de mim. E não sei se será pela minha incapacidade, se pela nata insolubilidade do que me povoa. Ambos, talvez, que da vida já nada se espera.
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Aquela piada do tolo que martela o polegar para sentir o prazer do desinchar da dor, nela mesma a resposta toda à mais profunda dúvida teológica. Haver mal no mundo sendo deus perfeito, por defeito, não é prova da imperfeição dele mesmo, mas da sua competência. E procurar uma resposta na dúvida é dos fracos - os fortes procuram um martelo.
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Sentir o choro chegar e só conseguir pensar em como o descrever na página. Que parte ridícula da minha vida me encontro vivendo.
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A poesia é uma forma inferior - ou fraudulenta - de dizer as coisas porque se submete a regras - a não ser que consista em prosa com parágrafos na vez de vírgulas. Não lhe chamo forma de arte inferior, atentem, mas de dizer as coisas. Porque a alma não tem métrica, caramba. As minhas ideias são demasiado urgentes para me demorar a pensar na rima.
Ah, eu e a minha neurasténica mania de fazer das verdade minhas as verdades gerais. É a minha alma impreparada que não consegue poesia. Mas é claro. E o poeta é todo o que queira, desde que saiba domar as ideias. Vejo agora e acabo assim por assinar um desmentido de um parágrafo para o outro.. Obrigado e boa noite.