Ainda pode descer.
Estive, há dez minutos atrás, na varanda do meu quinto andar, a observar a cúpula invisível entre o céu e o enorme lego de betão, e a sentir-me um inquilino passageiro desta pensão de uma estrela, perdida na imensa cidade negra, a que damos o nome de Universo.
Curiosamente, parece que é o único sitio que temos para passar a longa noite que nos espera e é aí que eu saiu para apanhar a frequência. Como que a comer um ponto e a cagar um verso. No meu prisma, a encaixar, provavelmente no de outros, feito um filósofo de merda, mas a vida é isso mesmo, um monte de gente a fazer de conta que se entende e ninguém sabe dizer o que viveu.
Por isso nos pedem que caminhemos, alegres, para o precipício sem questionar. Porque estaremos sempre longe. Mas longe rapidamente fica perto e perto rapidamente passa por nós. Eu não quero mandar-te para baixo. Mas eu sei que me entendes. Tu também tens medo de morrer, toda a gente tem. Só que normalmente inventamos montes de problemas para nos convencermos que estamos ocupados a resolver uma situação importante, quando não tem importância nenhuma. Entretanto o tapete rola e nós irritamo-nos com uma inevitabilidade e nos nossos sonhos dizemos:
"Torna-me imortal, torna-me imortal, eu não vou aguentar deixar de existir!" E é ai que eu entro para sair da frequência.
Seduzir-te com os meus sonhos, tu não vês como eu empreendo? E como eu e mais um milhão de sonhadores leva com ele muitos braços de outros, acéfalos, na lotaria dos ideais, descrentes beijando o número do bilhete. Mas devo dizer-te que a viagem é tua e não quero empurrar-te á força para a rua. Se eu falhar vou passar de Deus a carrasco, embalsamado e metido dentro de um frasco para te lembrares da mentira. Mas a verdade, é que ganhamos sempre.
Manel Cruz