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(Aquele que supera as emoções destrutivas, que não vê castigo dos deuses no infortúnio pessoal, que acha que ser condenado ao exílio é só deixar de ser importunado a toda a hora, não é aquele que não está atento, aquele que se distrai da vida por achar que fruí-la é deixar de ter escrúpulos, não é aquel que olha sempre o lado luminoso da vida, porque para ele, como no império de Filipe II, que gostam de chamar Filipe I cá por nossas terras ainda que não seja a tabela a dar o nome a quem manda, mas quem manda a dar-se a si o nome, em verdade vos confesso, o sol nunca chega a atingir o ocaso. Desagua toda a vida na terrível iluminação de que não é o sonho que comanda a vida, tampouco o poderão ser as energias do desejo, muito menos a fé ou a esperança ou, esses ópios, tão bálsamos, ficaria bem no discurso dizer que, de facto, é a ganância, ou, ainda, e não poderia faltar, o amor, esse mesmo, o tal, gasto do uso, mas não, nada disso é o que, mesmo aparentando, move o mundo: move-o, sim, um conjunto intrincado de rodas dentadas, correias e cabos grossos puxados por mãos cortiçadas. A vida não é ortografia latina, a consoante muda não abrirá a vogal que a precede, não se pode amaldiçoar a terra se só se plantou joio, um depois nunca poderá, na vida, comprometer um antes, o efeito nunca poderá negligenciar a acção. 
O único jeito de escaparmos à ordem invicta das coisas é inventando. Argumentam aqueles que não gostam de dar parte fraca que nada se inventa - a mente recicla tudo, ao captar tudo, guarda a mais inútil informação num canto qualquer do cérebro, pode ela um dia ser precisa. É verdade. O mais honesto dos autores pode escrever uma frase que leu um dia, de soslaio, e depois esqueceu, e escreve julgando-a hoje ser sua. Afinal, o mundo não faz outra coisa que não repetir-se e o alfabeto são só vinte e tal letras. Escreve-se no século vinte que a única que coisa que falta ao homem é saber como viver, mas esquece-se que já todos os estatutos estavam delineados ainda Jesus de Nazaré era uma ideia plagiada na cabecinha do senhor nosso deus e a humanidade discursava de toga. Pois que se invente.

A correria da hora de ponta e a miopia do tosco narrador faziam espadanar em largos borbotões de luz toda a correria de um trânsito, toda uma transumância de pessoa em peregrinação para casa. O ar, húmido, enchia-se de um cinzento triste e era quase noite. O olhar de alguém que vê mal é um olhar urgente, não o olhar vago de quem consegue descrever um ponto de fuga a mais de dois metros da ponta do nariz, e procura sempre onde se agarrar. As pessoas cruzam-se, cautelosamente afastadas, mas os olhos dão encontrões, ainda se furtivos. O âmbar da iluminação pública dava a este cenário uma propicidade literária que de outra maneira não teria e parecia querer encher já a noite toda que se abeirava. Uma menina cruzou-se comigo. Se fosse o caso eu conhecê-la, diria, 

Como o mundo é pequeno.

Não sendo o caso, nenhum de nós parou. Mas ela ficou comigo. Guardei-a num bolso. Refiz-lhe a vida toda, porque o mundo é pequeno e regido por leis indevidas. Passava serena, mas com o passo veloz. As linhas da cara rectas e brutas, um queixo agudo suportando dois lábios singelos mas de rubras carnes que rasgavam a face num sorriso terno e desdenhoso, sem malícia, um desdém que desafia, descobrindo um par de dentes brancos como cal viva, olhos redondos, terminando em curvas suaves de crescente lunar, talvez herança das terras entre os rios, um pescoço marmóreo e de uma dulcesa de trincar, cinzelado por mestres, emoldurado por uma camisola negra e justa que assentava no peito como a consante muda acentua na ortografia latina, a curva dos seios a descobrir uma sombra no ventre e descobri-lhe tudo menos o cheiro. Quantos acasos foram necessários para a colocar no meu caminho? Em quantos lados tive eu que me demorar e ela que se despachar para nos encontrarmos (eu a ela, porque ela nem me viu) naquela esquina? Como se combate o fatal desdestino da reacção incorrupta das acções? É simples: deixou de ser aquela mulher que passou e ficou agora a ser aquela mulher que eu aqui escrevi. Ela nunca me lerá e nunca saberá que é estas coisas todas. Foi o que fiz. Apoderei-me dela e ela, agora, faz o que eu mandar. A mulher que eu escrevi aqui foi a que realmente passou por mim, sem ai nem ui, tal e qual como a lembro. Porém, posso escrevê-la virando-se para trás, caminhando na minha direcção e perguntando,

Oiça lá, porque foi que me olhou os seios e agora está a ver que adjectivos encaixam melhor nesse parágrafo vergonhoso que está a pensar escrever sobre mim?

ou, sabe-se lá, virando-se para trás, caminhando na minha direcção e, sem perguntar, agarrar-me pelos cabelos e espetar-me a língua frenética na boca.

Sendo-vos sincero, já não sei mais se ela realmente passou por mim. Podia ter sido a vida, a passar, que eu só teria dela o prazer de a escrever. Melhor assim.)

publicado por Gualter Ego às 23:27 | link do post