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Se alguma vez me quiserem escrever uma biografia, basta dizer que espantei amores à calhoada e vivi a vida toda entre parênteses.
Se alguma vez me quiserem escrever uma biografia, basta dizer que espantei amores à calhoada e vivi a vida toda entre parênteses.
22/7/2013
Cheguei ontem à tarde. Demasiado calor e demasiada gente. O corpo a latejar do dores, os membros dormentes e o suor a
escaldar pela cara até ao pescoço. Entre tanto calor e entre tanta gente, falta o abraço quente, nórdico e apertado de quem faz este sítio ser o que é. Uma casa vazia nunca será a casa onde cresci. Amanhã tudo se verá.
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Não sei o que é, nem percebo como poderá ser, que a razão pura, apesar de que a luz da clarificação arda num pavio ainda curto, não me arranje força nos músculos para acabar de já com tudo, se a mesma me diz que estar vivo não é além de um incómodo, que não passo, não passamos, eu e vós, de um distúrbio que a casualidade das coisas desventuradamente deu à luz. Ditam factores biológicos, mas há quem o faça por razões triviais - questões mesquinhas, negócios falidos, crises familiares, impotências carnais. Reduzem-me ao animalesco que é o agir por instinto, quando há muito que ajo apenas por exclusão de partes. Sou cobrarde e sei-o; mas reconhecer a culpa não é estar inocente. Vou estando, porque nada ganho em ir daqui mais cedo - e sei que o poderia fazer. Tendo a morte como certa e olhando-a calmo e sem desassossegos de coração, vive-se melhor, ainda que miseravelmente. Quando qualquer coisa basta, viver deixa de ser calvário e passa a ser uma estadia incómoda, mas nem tanto encarceradora. Um pouco como a inveja, tenho a vida e aproveito-a, como quem é mal servido mas come porque já pagou. Se dela fazem festins de sensações, missões divinas, entregas fatais ou uma aborrecida passagem comum, será bem. Se dela fazem passar o tempo, olhar para coisas, entreter-se, será bem também - mesmo que haja sempre tal dia em que cada passo é um flagelo e cada brisa um soco, que a comida não saiba a mais que uma obrigação, combustível da máquina animal que somos, ao fim do dia lembrar-nos-emos de tudo e anotaremos tudo, para os olhos inúteis de compreensões ineficazes. O mundo só sente o teu peso, nunca a tua falta.
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Consome-me a consideração, não de que sou da mesma altura que os medíocres banais do mundo, mas que sou o mais banal e medíocre dos que são altos e podem ver. Eu também vejo, mas é como se houvesse um muro entre mim e o ocaso, que só me pudesse deixar ver a sua suposição, o poente em vias de ser. Serei sempre em vias de ser. (…) Puseram-me em carris de crescer um homem - trabalhador, bruto e contribuinte. Não me deixam pedir pouco porque a arte de pedir pouco tornou-se passatempo dos que têm muito. A vida é um truque de cartas, não fumar um cigarro porque puxar o fumo é demasiado trabalho, fumar um cigarro porque o ar comum, respirando, calejou a alma e a traqueia. A preguiça de nada fazer; o fado de nada completar.
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Cada vez mais sinto o corpo como um estorvo e as minhas acções escusadas numa maneira de lhes dar uma justificação. O espaço que roubo, o alcançar atabalhoado, o sorriso torto e a insatisfação plena e inútil e vergonhosa da carne e dos respectivos prazeres. A vergonha de ser de carne e tropeçar nessa irrisória condição, e não ser a água que passa que é a água que passou e ninguém notou. A alma reflecte, mas o corpo arrasta-se, sedimentando-se como um caudal, pela sombra, fedendo e latejando, prenhe de nojo e esfomeado do comum. Não sou do saco de carne em que amortalharam quando nasci, este corpo é só uma unidade de medida, uma máquina de fazer em detrimento do agir.
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As minhas emoções moram noutro sítio, em reacções maquinais e algorítmicas. Amo, se tanto, uma macheia de pessoas. Guardo, para elas, a cicatriz gangrenada que é o meu real e indizível sentir - e assim dele só posso escrever noções ou a descrição insípida do dito, que o forma um qualquer coisa de medíocre. Tudo perde essência quando recordado, como que a transferência química de folha para folha. Sentir é uma ocasião e só se sente de verdade quando só depois do sentir vem a razão dizer que ele foi inútil e iconsequente, porque o nosso corpo, agarrado à alma, é roldanas, que enfim param.
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Quem atenta demasiado não encontra o que procura. Não é a mera mutação de uma expressão do hábito (popular), mas que quando nos preocupamos em sentir apenas reparamos nos fins de sentir, apenas notamos a ordem da sua intensidade, a cor dos pormenores, a cacofonia do imemorizável. O próprio assumir que se sente é uma presunção, um acidente condescendente, um erro comum e incontornável - porque sentir sem saber é não o relembrar fazendo-lhe justiça e sentir sabendo-o é sujá-lo. Não podemos ganhar, podemos apenas perder uns melhor que os outros.
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Não sei se me finjo, se me entro em desacordo, porque o contrário é a justificação. Não como método, mas porque a vida já é chata sendo só.
24/7/2013
15:32
Há alegria na tristeza tanto quanto há sorte no azar (se nele, incautos, cremos), porque nada existe absolutamente. Como uma tragédia pode sempre acabar num fim mais sangrento, também a tristeza pode ser risível, ainda que o riso possa soar desdenhoso nos ouvidos dos que entristecem sem conhecer a tristeza. Destilar prazer, venha ela da forma que preferir (orgásmico, alcoólico, letárgico), de tudo o que há e acontece. Desde novo que cultivo este hábito, mas apenas agora deixei de sentir remorso - passei a reconhecer que não é feitio, é miopia de emoções. Chorava porque não chorava em velórios de família, insultava-me ao espelho por, não desdenhar, sentir-me indiferente às dores comuns e, convenhamos, exageradas dos outros. Era um pobre com frio na alma e sentia-o na ponta dos dedos, até que a vida passou a ser sempre uma quarta-feira num mês de Outono. (Às emoções não as recebo: convoco-as, cautelosamente, e vou levantá-las à posta-restante.) Nada me move, nada me comove, mas vejo tudo e sinto-o, e deixo-o corroer por mim, e soberbamente o saboreio, na razão. Há crepúsculos de alma em que o mundo me entra pela língua e outras partes em energia de prazer. Aí esqueço, e a questão que aqui ponho não existe, porque não sou eu.
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Transcrevo apenas parte do que escrevo com a alma. Sendo analfabeto ninguém me impediria de continuar a escrever - e escreveria deveras lucidamente, apenas sem este rabiscos simbólicos que tanto têm de traiçoeiro como de inútil; grades de uma prisão de três paredes, que está para lá.
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O inútil protesto de não se achar contente ou conformado com o ser que se é. Se o fosse não o saberia. Nenhum prazer viria daí maior que o prazer que sinto ao sofrer de ser eu.
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Às vezes um piscar de olhos em que tudo se torna claro, como comboio que se perde porque as pernas não nos querem deixar correr. Às vezes outro piscar de olhos, e uma inundação de pensamentos, e tudo é escuro outra vez, não há suicídio desta cegueira de ver, a eutanásia muda e lenta que é o Destino.
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Renego o corpo - não agindo - ao estado neutral que é ser alma. Deram-nos um corpo porque o Universo não sabe estar quieto e a alma limita-se a ver. A vida é um distúrbio e por isso é que é vida. Qualquer movimento, um espasmo, um rolar de olhos, um coçar de desconforto, é escravidão. O corpo é um grilhão de carne e isso não nos atormenta porque beber, comer e fornicar são prazeres do corpo para o corpo. Quando a razão imaculada e o intelecto puro se venderem nas esquinas como objectos de prazer, a vida será completa e o homem terá triunfado. Poderá, também, enlouquecer. De qualquer das maneiras, será o seu fim, não só porque tudo tem o seu, mas porque o intelecto puro é a mais eficaz forma de destruição.
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Um homem sozinho só pode supor que existe. Não há uma ligação necessária entre o eu ver-me (ou saber-me) e o eu estar. “Sou-me”, apesar de uma filosofia em duas palavras, é também uma demonstração eloquente de presunção. O homem é como um deus que precisa de homens para existir, mas poderes o homem não tem.
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Podemos resolver tudo menos a vida ser uma aula monótona sem toque de saída. Podemos guardar-nos de tudo menos do tempo - e o tempo é muito nós mesmos.
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Se o tempo fosse justo e lento, as recordações não existiriam, porque o passado seria como um museu que se visita sem se tocar. Se o tempo fosse justo e lento, não seria tempo, seria demorarmo-nos em saudades palpáveis e tóxicas, até perdermos a paciência.
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Exclamo com expressão altiva e condescendente de quem se acha achando tudo que o mistério da vida, para além de não haver mistério algum, é ele não ser mistério. E não temo a morte porque ela é só acabar tudo. Porém, aperta-me o coração quando acordo dos sonhos onde levo a enterrar quem julgo amar. De onde chega esta compaixão? De onde vem sequer o amar que me torna vulnerável à compaixão? Sou fraco e frio, ao mesmo tempo. Como um relógio que não sabe para que lado rodar.
24/7/2013
22h41
Não confio nos homens; tampouco nos deuses, em cujos toda a confiança pode ser depositada, sem perigo de que nos traiam, já que somos a última coisa de que eles querem saber. Confio nos sentidos e na ordem das coisas, nas trovoadas e no sol que tira toda a graça aos cortinados encarnados da sala-de-estar do mundo. Confio no tempo que passa e numa mulher cujo nome se perderá no clarear do dia. Confio no que me satisfaz, como as leoas que seduzem a jovem e inocente gazela que não conhece o conceito de dentes caninos. O prazer é um cobertor que se põe na cama na primeira noite de inverno e a mandíbula rasgada de uma besta prestes a morder. Relações com os homens mantenho as mínimas - com um nojo de mim próprio dos protocolos da catequese que não me deixam largar o mundo e deixá-lo afogar na imundícia que vem acumulando desde o início dos tempos. Não confio nos homens.
Ombreio e saúdo os inconformados - pouco mais. Não tenho pátria, reunião avulsa de homens num pedaço inútil de terra. A única pátria que poderei dizer minha está entre as pernas de uma mulher.
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Todo o mal nasce do agir. Ficar quieto, muito quieto, controlar a respiração e acalmar o cavalgar do coração ingénuo e ouvir somente. Ouvir - e reparar como o mundo se move tão bem sem nós - e rir, enfim quebrando o silêncio, rir como só aos loucos se ouve, porque a vida é uma piada e nada importa.
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À minha frente um crucifixo e à sua frente um homem, de joelhos, curvado, com os antebraços todos no chão e a cara encovada neles, certamente em oração. Veste-se com o casual, algum esforço de acompanhar o que se usa, esbatido pela trivialidade da roupa. Não se move. Aparenta ser jovem, se isso especificar alguma coisa. E curva-se perante um pau com figuras. Eu também sinto medo e a impotência de ser homem, mas não me curvo desta maneira a pedir pelo que não tenho. Deixo de compreender quanto mais o tempo passa. Não me curvo ao absurdo da vida. Não oro perante um prenúncio de morte, uma nuvem escura, uma trovoada. Não. Uso a minha falta de fé como objecto da minha fé. Uso a minha entrega ao Fim e à ordem das coisas como quem usa um crucifixo. Mas ele não se vê nem se carrega ao peito, porque não há que se veja, nem conversões a levar a cabo. A fé no nada não tem símbolos, porque o símbolo é o começo da fé nas coisas.
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A vida é perfeita porque não pode ser perfeita. É uma imperfeição infinda de possibilidades. Nada é tão lindo que não o possa ser mais - nada é tão medíocre que não possa ser mais medíocre ainda. E é-o tão mais escrito ou pintado que quando o é. E é para aí que escorre todo o meu esforço preguiçoso de escrever.
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Escrever que a vida nada tem de sentido faz mais sentido que ela não ter sentido. Escrever, porque o papel não respira, é uma menor sentença de morte que viver somente.
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Fui um Alexandre Magno, Xá da Pérsia, Faraó do Egipto e Senhor da Ásia de todas as vezes que marquei um golo nos jogos de futebol que aconteciam no recreio. Fui um Vasco da Gama, almirante-mor, Vice Rei das Índias, quando dei o meu primeiro beijo. Fui um Fernão Mendes Pinto, peregrino, pequeno Marco Polo, veneziano, sempre que pus pé num comboio. Tudo tem a mesma altura. De que me vale ser imperador de tudo o que é sítio entre Pequim e Constantinopla, se não consigo atar os nós da minha alma?
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Faço contricção de quê?, se a culpa não existe; ou existe, se no momento da acção reprovável. Ao colo de que mãe posso chorar, não um joelho esfolado, mas a própria vida esfolada? Quem acredita em deuses atinge a consciência leve. Tanto não acredito em deuses como em pesos na consciência. Os crimes que cometo são contra mim mesmo. Sofro-os e ao castigo. Ouve, mãe, que não secas das minhas bochechas as lágrimas que choro por mim de toda a gente.
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Tudo isto que escrevo me parece insípido. Está carregado de coisas que assumo como lei, suposições que contorno, condescendência anónima e sem remetente. Já tudo me parece falso e vão. Nada me compele, nada me interessa, já nada me consegue levantar o tom de leve e imponderada irritação ou fazer tremer com um nervo de inquietação, não porque tenha aprendido a calma, mas porque estou cansado de tudo.
Sou um esfomeado que come o que escreve e tudo isto é só pão sem fermento.
25/7/2013
Tudo me chega com o torpor baço e pegajoso de uma garrafa vazia na adega a ganhar pó. Toda a luz do sol quente ricocheteia no mundo e chega a mim em forma de tédio. Nada me parece novo. Comprei a vida em segunda-mão e custou-me os olhos da cara. Não tenho outros olhos com que veja que não os da coerência racional. Olharei para o Coliseu de Roma e bocejarei, olharei o Partenon e ele só me trará vontade de dormir. Tudo me parece ou um trabalho hercúleo ou um aborrecimento quixotesco. A única revelação, enfim, é que o mundo já nada tem a revelar. Importo-me porque sou do meu tamanho, mas inútil já no presente, fará no passado. Do futuro nada espero, porque tudo se pode esperar. Porém, não cesso, como método, de pensar. Dou-me ao trabalho infrutífero de escrever. O segundo homem a pisar a lua também pisou a lua. Há vitórias e vãs glórias até na derrota. Um derrotado da vida como eu só pode sentir como vitória tudo isto que vai deixando escrito, bem ou mal. Um dia, talvez, pai e conformado e comido do tempo e do tédio, abrirei estes cadernos e, humilde, rir-me-ei, tenho a certeza, da minha ingenuidade fatal e triste, e sentirei saudade, como deveria, segundo os poetas, sentir da infância. Da infância tenho pouco que falar, tanto quanto para recordar, mas invejo a lembrança desse atabalhoado eu que lá descansa e não é em paz.
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Tanto quanto sei ou quero crer fico em todos os momentos em que me reconheço, quieto e pálido, sozinho ou acompanhado, e divido-me em dois. A linha natural é esta, que sabe e o aponta. A outra linha, não menos natural, segue com as reuniões alegres de gente, diz expressões da moda e deleita-se de boca cheia com o calão que emprega metodicamente. Eu sou o ser humano, ele é o fazer humano. Invejo-o, mas não a vida que leva, porque não a leva, vai somente, e não o leva, apesar de todo o esforço, a lugar algum. Prefiro a consciência presunçosa da amargura e o desfrutá-la ao pocilguento viver na mediocridade do normal.
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Onde houver um pedaço de terra, haverá um homem que ache digno morrer por ele. A ilusão da propriedade é achar que temos qualquer coisa de nosso, quando somos inquilinos até do nosso próprio corpo.
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O prazer supremo vem de procurar a resposta que pode nem sequer existir para um problema que não devia sequer existir. A vida sempre me foi uma crise anginas, primeiro no acto, depois do ser, depois em tudo e no pensar, que é o sentir dos preguiçosos e dos doentes.
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Disfarço que me notem ou que note olharem-me de soslaio. É assim que vivem os certos - olhando por cima do ombro com medo que dúvida ataque à traição. A certeza é muito incerta. Fiz da incerteza a minha forma de andar. Por corpo tenho só a inutilidade recreativa de tudo e o repetir-me.
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Serão tolos se algum dia pagaram para ter um livro meu, porque tolo fui quando me deixei publicar. Escrever é uma oração muda, de joelhos na beira da cama, sem remetente nem contricção. Deixar-se publicar, que prostituição de alma. (…) Pagar pela literatura que não a recreativa é pagar por uma viagem inconjunta pelo ego esponjoso de quem a escreveu - um escarafunchar na alma com os dedos sujos e a alma sangrando inútil.
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É uma viagem, se eu nunca chegar? Morrer é o que nos faz vivos e não nascer. Somos imortais até morrer.
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Uma projecção de mim é o que tenho andado a viver: é um filme triste e adormeci a meio.
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Escrevo-me como quem visita umas ruínas ou como quem reza, em masturbação indulgente.
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Se me pudesse sentir, não me deixando, noutra pessoa, sabendo-a tão complexamente inútil e desassossegadamente viva quanto eu, amaria a humanidade toda, de verdade, como quem beija e abraça em êxtase de ânimo e com lágrimas nos olhos.
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Escritores que, sem saber, idolatro, ingénuo, como deusidades intocáveis. E então a página que me fala dos seus vícios, dos seus
defeitos, das suas falhas ridículas e das brigas bêbadas e das dívidas que contraem, todo o erro humano, e eu ganho um ânimo novo na sua normalidade, porque rezava ao fogo que destrói, sem conhecer a água. Nenhum homem é maior que eu porque eu não sou mais homem nenhum.
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A caneta falhou e tenho agora que escrever a lápis. O grafite tem no seu som a tabuada da minha infância e a uma caligrafia mais bonita. Quando o futuro era lembrar que antes do dia acabar havia o esforço de adormecer no escuro.
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As horas que durmo são intervalos da destilação sádica e maníaca da vida. Evitam que se torne vício. Como se dormir precisasse de justificação.
26/7/2013
16h01
A mania do absurdo e do paradoxo é a alegria animal dos tristes.
F.P. L. do D.
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Ajo na vida como quem decorou uma peça e interpreta uma personagem. E como esta metáfora teatral para a vida me enoja, entristeço. Não há didascálias, nem panos onde se esconda o ponto, mas eu sei as falas e os gestos de coração, não importa a deixa. Enxugo uma lágrima ou aperto o pesar contra o meu peito. O espectador inverso, porque me vê vivendo, gaba-me a bondade. Não é bondade. Está escrito assim, nada mais. Não há palmas nem
pano, mas os desassossegos cessam - ao menos isso. Ah, se o mundo pudesse parar para beber um chá e dormir um pouco.
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A minha mãe criou-me cheio de humanidade, mas não para a Humanidade. Talvez por isso não me ache emparelhado nela ou simpatize o mínime que seja com ela. Está cheia de gente que é como se fossem os naperons do mundo, caninos num herbívoro. A empatia enfraquece-nos e irrita-me quem se demora em decisões ou as problematiza. Não sou um facínora profético, mas sou um meritocrático prático - a Humanidade deveria usar de testes de aptidão.
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O destino fatal alcança-se andando ou não. Para quê cansar os pés?, se posso fingir que sinto o sonho, a verdade e a luz em todas as ervinhas em que me deito?
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O sino dobra a defunto e é quase sempre uma das figuras distantes que eu via passar na sacristia, e passando me poisavam a mão gentil e encochada no cocuruto e diziam, breves, “adeus, ó João”. Velhinhos crentes que dizem olá dizendo adeus. Tenho-os queridos porque para mim não morreram. Continuam a passar na sacristia, encurvados, camisa para dentro das calças e sapatos engraxados, ou a blusa e a saia negras de viuvez, a poisar-me a mão na cabeça e a dizer “adeus, ó João” e eu continuo lá, dentes tortos ou em falta, cabelo curto, bochechas gordas, “olá, dona Lurdes, boa tarde”, criança que recordo como imperador de tudo, porque possuidor de nada e desejando um nada ainda maior. Morrerão quando eu deixar de os lembrar e o sino não há-de dobrar.
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Quando era pequeno e tinha febres altas, cantava canções que conhecia da missa e chorava que não queria morrer; cheio deste instinto animal, a minha mãe regozijava de ter um filho tão dado ao Senhor, apesar de haver algo de precocemente mórbido (ou vice-versa) em temer (e reconhecer) a morte com aquela idade. Não me lembro por que razão chorava e gritava que não queria morrer, mas não duvido que fosse a razão mais certa.
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Onde está a fama que me devem de todas as obras que não escrevo? Não existiram, elas, também? De facto. E são perfeitas porque não existem noutro lado que não naquilo que faço delas na minha cabeça. Transcrevendo-as estaria delapidando-as, debilitando-as, tornando-as mortais, como eu, e alcançáveis a todos. Ah, que maior orgasmo é ignorar a ideia súbita que vem no leito e que ignoramos, burgueses das revelações, adormecendo, quase que pedindo para não a lembrarmos ao amanhecer, como quem limpa o cu com notas de cem. Ah, e o prazer mórbido nisso tudo, que é como cuspir no prato onde se comeu e voltar a enchê-lo de comida.
27/7/2013
23h38
Neste lugar sempre me arrebata um ânimo benfazejo que não encontro no restante do ano. Penso, às vezes, se não será aqui que vivo e que Portugal são as férias mais longas e entediantes que alguém já experimentou. Há pouco, na oração da noite, cantava-se em latim - in manus tuas pater commendo spirito meum - e uma convulsão de choro cresceu em mim, triste de morte por não ter a quem confiar o meu espírito, desfeito da vida por não ter uma cruz onde poisar a
fronte pesada da angústia. Ter um deus a quem chorar é nunca ficar grande demais para o colo da mãe. Nos tempos de Abraão serviam-se banquetes se a criança sobrevivesse até ao desmame. Quem tem um deus tem sempre uma teta onde suprimir o choro. Tolero os barulhos dos outros com um sorriso - que é genuíno sem sentido nem desdém, nem desafio, nem condescendência - apago-os, outros dos outros, e imagino-os conforme a dignidade mínima. É um espírito quase missionário que se apodera de mim, colonizador de nada, exilado sem ilha, que a minha alma é quem cumpre pena nas galés do porto que é sentir. Tolerar é carregar uma grande pedra. Como quero socar quem não sabe ficar, como me nauseia quem se embebeda em risos histéricos e inconclusivos - e como tolero, como é só a minha obrigação, como grão-mestre da sociedade secreta dos cobardes e vencidos da vida por falta de comparência.
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Quando abalei de comboio por terras estrangeiras, cultivei, quando o ânimo mo permitia, o hábito de imaginar que era o mundo que passava por mim e eu quieto, sobre os carris, imaginava que estava à janela de minha casa debruçado para o pinhal e o mundo corria calmo e apressado. Como o mundo tem uma sede tão indigna de velocidade e rapidez, ah! Quão inútil é o apressar-mo-nos, se o mundo não foge. Mas é sempre ele que passa, aprendamos, e ele passará sempre até que eu saia de mim e seja muitos, muito longe. Quão desprezível é ficar em primeiro, quando se pode doar a outro a vitória e ela lhe servirá tão melhor. Vencer para quê? Toda a vitória é atrasarmo-nos em distracções. Toda a glória é uma variação onanista. A velocidade é uma bebedeira de emoções para a vida e para bebedeira basta-me vivê-la. O comboio da minha vida está atrasado muitos anos.
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Nunca me achei grande serventia, mas era noite de pesada tempestade, trovões ecoando e revolvendo-se soltos nos fios brilhantes da chuva empurrada pelo vento, em bátegas chicoteadas de fazer o coração saltar - e ela aninhou-se a mim e afundou os cabelos no meu peito e eu então fui de servir para alguma coisa e estar vivo, perdoem-me a trivialidade da sentença, fez sentido. Depois a trovoada cessou e os relampejos em mim recomeçaram.
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Toda a linguagem é um grunhido roufenho de dor, um discurso pigarreado e ridículo, quando não utilizada subjectivamente.
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Todo o homem está certo quando fala daquilo que acha. À verdade nem lhe podemos tocar, mas ter a certeza em algo que seja é talvez um cheiro a ela e das sensações mais bonitas de viver.
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Não precisam de me notar os defeitos; poupem-se a esse trabalho. Sei-os todos e tenho-os listado. Sou eu, afinal, quem os tem e os alimenta. Porque defeitos todos os temos, mas há algo de carnalmente atraente em que os cultiva e exercita e consegue sentir orgulho neles. (Não me refiro à psicologia de folheto dos erros que nos fazem crescer e aprende a levantar quando caímos, mas de cultivar um método e ter os defeitos como mais íntimos conselheiros.)
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Sou estóico porque me distraio. Não sei dobrar uma camisa, mas sei abstrair-me a tal grau que o desânimo, a angústia e o desamparo foram nuvens de vapor que se dissolvem no ar já húmido - e tanto quanto me esqueço eles
se esquecem de mim - e nada importam. É um estoicismo por omissão. Sempre tive várias formas de me salvaguardar da vida e os outros sempre foram exímios a dar-lhes nomes (e a mim, por atrelado).
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A vida tem-me cativo e eu apaixonei-me por ela. Como um rato que se aninha no fúlveo pêlo de um gato mais manso, deixo-me estar vivo. Quero matar-me, mas até a ideia de o mundo cá ficar depois de eu morrer me parece demasiado bela para abdicar.
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A empatia é o que faz ruir civilizações. Matar é mais nuclearmente animal que foder.
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Debrucei-me sob a torneira e bebi três goles de água. Não consegui confrontar-me no espelho. Há cabelos em roda do ralo. A cara que tenho não é minha. Tenho uma cara atrás da cara; e a voz com que penso isto que escrevo não é a mesma que o leria alto. Somos a consciência de uma máquina orgânica e falível e eu não consigo deixar de me sentir trancado cá dentro.
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Nada importa. Os meus problemas são tão dignos de uma doutrina quanto os chinelos fora da sítio que a minha mãe protesta do fundo da escada - diferentes noções de caos.
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Que a morte se esquecesse de mim como quem se esquece da chaleira ao lume. E que quando desse por mim tivesse já eu arrufado a vida toda e evaporando para um sublimado estado de agora nada, que, a bem ver, teve, forçosamente, de ser tudo.
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Como se a minha vida seja a decantação de muitas outras - mas que eu não passe de uma tigela de água turva.
28/7/2013
A religião é das construções mais bonitas do Homem, porque é a submissão imaculada à ordem das coisas, indulge, sem dar a outra face, mas mascarada de fábulas e parábolas.
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Como é nobre o limitar-se a escrever. Aquele que vê e ouve e não levanta a voz acima de um pensamento, ganha o mundo que sobra aos outros e é senhor de todos os reinos da sua alma. Aquele que vê e ouve e somente escreve, age sem disturbar o mundo. Eu ter nascido foi o mundo que tropeçou. E o mundo ter começado a existir não terá sido a melhor das decisões - e desde aí pesam em mim todas as acções que levaram a uma reacção de segundas e terceiras partes envolvidas. Eu só queria passar no mundo como uma sombra num dia nublado.
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Tenho ideias para a vida e até métodos inteiros; mas a primeira condição delas todas é estar sozinho no mundo. Sou sozinho sendo mais, porque me envergonho sozinho e me desminto falando para mim e me vejo de fora tentando ser mim. Teimava que só se vive em comparação e que só se existe mediante o reconhecimento independente, mas no outro dia vi-me lá ao longe, projectado por uma tempestuosa saudade, e fui-me, verdadeiramente fui-me, e a minha alma escangalhou-se e choveu.
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(Recebi, hoje, uma carta que me escrevi na primavera do ano passado, fruto de um desafio que me propuseram. Trato-me com a dureza que só dirijo e exijo a mim mesmo. Trato-me por João e não por caro, porque “o valor que tens, mesmo sendo teu, só vale se vier dos outros” - a feliz inocência de ter dezassete anos e sonhos para a vida - nem por querido, porque “até hoje não aprendeste a querer-te”. Exijo-me que João me baste. "Chegaste à conclusão que não vale a pena estar vivo (…) e espero que já tenhas parado de pensar nisso. Mas sei se que não, que continuas a escrever redundâncias e a rabiscar parvoíces" - ah, como eu era vivaz e petulante e acidamente adorável. Mais à frente falo de um sentimento de plenitude e leio-me com uma cifra que ainda hoje resulta. É como pendurar na parede o corpo que se tinha e olhar para ele, agora, com uma brilhante nostalgia, e rir da desgraça profética, e ver que tanto mudei e tão pouco as coisas mudaram.)
•
Ancora-te à vida e navega por ela toda. Só se voa porque há chão, bater as asas é secundário.
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Haver gente onde não estou pesa-me. Haver outros é quase um insulto. Todas as pinturas com mais que uma cor de tinta são só um esforço irrisório, um soco dado ao vento.
•
A nossa vida é como um império sempre prestes a cair. Porém, como todos os impérios, tem o seu auge. Reconhecê-lo é a chave, abdicar é a decisão acertada.
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Eu não faço mais do que saber do que falo. Não sou insensível por reconhecer a sensibilidade e não me deixar enganar por ela. Sou só um escravo que foi amigo de infância do seu mestre.
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Odeio de morte os sussurros de igreja. O arrastar das vogais e o estalar das consoantes. O respeito só existe todo.
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Só tolero ter emoções se platonicamente. Desejo todo o mundo na minha ideia de mundo e a noite de insónia a pensar no nascer do sol é sempre melhor que o nascer do sol. Tolero a vida na ânsia de uma insónia de véspera.
•
A nudez é um estado permanente, porque a roupa só faz atenuar uma condição alheia à condição. O sentido da vida é uma mulher em camisa-de-dormir, que eu amo perfeitamente sem tocar, e devoro carnalmente, deslumbrado com a renda da bainha.
•
Os livros de História arrumam anos infindos de guerra em meia dúzia de páginas. Poderia escrever um capítulo apenas sobre a maneira adorável como mordes o lábio quando te concentras a fazer alguma coisa. Que diferenças há entre uma coroa incrustada de gemas preciosas e uma coroa de flores silvestres na cabeça de quem já desistiu da vida? E condenado à morte por heresia, o tal esse mesmo só se entristece porque a guilhtinha se demora tão pouco no pescoço.
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Quando todo o dia está ganho porque uma nuvem tapou o sol e se levantou um vento fresco e a vida vale realmente o incómodo de vivê-la, que embriaguez, é como coçar uma picada de um insecto, martelar um dedo