Diário #2

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Dizem as crónicas que o mundo já se revolvia aquando dos idos de Março de mil nove e noventa e cinco, já os motores desta máquina amamentada muito a sangue fazia crr e guinchavam numa violência de correntes e sufocavam em fumaças e vapores.
É quase anedótico: tudo e tão nosso menos o passado impessoal que só vem nos livros. Quão verídico poderá ser? Quanta da memória é história? e quanta da história ficou memória? Antes de nascer havia o nada, que era o meu nada. Quando morrer haverá, desenrolar-se-á um nada tão esclarecido como o primeiro e a vida, essa puta, continuará. A falta de respeito. Como é insultuoso que não recolham o pano que é o céu e desçam o sol e descolem as estrelas e tirem os agrafos às nuvens e desliguem a máquina de nevoeiro, isso tudo? Haverá vida minha para além da tua morte? Tu morres e eu te enterro e na manhã seguinte o sol, todo fanfarrão, lá vai subindo. Paraste ali, não há mais, mas a vida, essa puta, ri-se com os dentes podres na tua cara, espumando de troça, e faz o que lhe compete - continua.

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A música é feita de silêncios e de como eles se preenchem. Depois os arpejos, os glissandos, as apogiaturas, o pianíssimo e o fortíssimo e afins gírias. É ornato, mas é parte da peça que se ouve. Ou toca. A minha vida também assim vai sendo - cheia de silêncios desperdiçados. Calem-se agora um pouco.

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Há alegrias tão luminosas que arruínam o negativo virgem da memória. Mas nunca a evocação da dor dói tanto quanto vivê-la.

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Escrevo, enfim, sobre Paris. Não esperava o preto-e-branco do Truffaut mas esperava a graça da tez amarelada, com verdes de poltrona, do Jeunet. Tive a realidade, que arde nos olhos. Paris cansa, pesa, como se puxasse. Paris cheira mal - a mijo e sexo pago. É bruta nas fachadas, como que tentando repelir. Os postais são hediondos. A própria Torre Eiffel, condenada desde a primeira viga, esmaga sem encantar. Porque o desejo morre quando é consagrado. Pensava estar curado disto tudo. Sou um irremediável bucólico, porra.

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A vontade é de ignorar e ir dormir. Mas quanto mais cedo for dormir, mais cedo parecerá chegar o acordar. E é isso que me custa mais. Acordar. E dar os bons dias. Que presunção essa, a de dar os bons dias. Não quero treinadores de bancada nem cartomâncias na minha vida. Só os tolos dão os bons dias.

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(…)
A esperança é o ópio dos tolos, anotei eu uma vez, achando que me distanciava de Marx. Tolos somos todos e a religião não passa de um compêndio de fábulas que profetizam a esperança.
(…)

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Foi como se o gume estridente de uma naifa me tivesse atravessado carne adentro, lavrado pelo ferver do sangue - como se puxassem uma corda e se girassem roldanas e saísse uma pedra de cima de mim. O peso, como uma bigorna de pensamentos a servir de alma, tornou-se, enfim, leve, impessoal, mas tangível, como o vento. Abriram-se-me as comportas.
A criança, com o seu urso de pelúcia pendendo pela mão, cabelo loiro, muito fino, assim pela ombrada, nariz pequenino e pontiagudo e olhos atentos, como duas gemas, azuis azuis, espantados cheios de tudo sem perceber nada, tomou a vontade do pai pela mão e sentou-se-lhe no colo. Esta imagem derramou esperança, a tal dos tolos, por mim abaixo, afogou-me na graça vulgar da sua pequenez santa, senti os pensamentos a morte apodrecer de impotentes, inúteis e inconsequentes, senti toda a metafísica estilhaçar no chão do seu ridículo achar-se ser. Chorei. Não consigo explicar como ou porquê sem redundâncias ou foleirices, mas não deu para não acontecer. Talvez fosse um feliz esquisito. Mas ao mesmo tempo que havia sentido esta leveza que se condensou em pranto, sentia o esmagar de tanta beleza. Num pai que recolhe a filha no seio. Num puto desengonçado, russo de pêlos, olhos esbugalhado, também atentos também espantados, que corria de lá para cá.
Dos olhos da criança, muito abertos, como se vissem todo o esplendor luminoso de tudo o que é, plenitude. Mas não o sabe dizer, escorrer para o papel ou para, simples, palavras. Não a compreendem, sequer. São felizes. Ao máximo. Mas não o sabem. Creio não haver felicidade maior ou mais nobre que esta, inocente, que não se sabe e, por efeito, não se pode negligenciar, que não é passível de ser contrafeita.
Dos olhos das pessoas não consigo ver compaixão. Vejo escárnio. Desdém pela lágrima, como se a sensibilidade fosse sarna. Toda uma rijeza de ser e achar, como uma brisa siberiana que sopra do olhar nos olhos. Parece que fazê-lo lhes dói.
Uma rapariga que me viu de caderno e caneta na mão olhou-me nos olhos, sorriu, e bocejou um fonema indizível e inteligível, mas, enfim, sorri-lhe talqualmente, entre o espanto, a confusão e o lisonjeio. Há que ser uns para os outros. Dar a outra face é difícil e eu não sou capaz. A menos que a outra face seja ou esteja sisuda, então requeiram-me da outra. Um sorriso não maça por demais, não encanzina, não nada, mal ao mundo não virá.
Sorri ou faz por isso, que para infeliz bastas tu.

 

23:00

O fim, enfim, destes sete dias aparece pluvioso. No alto, do alto, as nuvens que se embrulham gordas, pletórica, inchadas, roliças, larga a levada de chuva que desencarde o mundo e deixa a lama onde as púrrias se lavam que nem jubilantes bacorinhos. Fica a mácula para quem a serve ao altar do nojo. A chuva, como o choro, é a lixívia da alma. Já que vamos embalados nisto do espiritual, a tempestade que se pôs tem achegas de mão divina. E a saudade de casa, e a mágoa que se põe em nós como uma carraça que é o enfim ter de voltar. Voltar para quê? Voltar ao normal, que de anormal tem que baste. Tentar mudar? Mas eu sou tão fraco. Finjo-me tanto e no fim sou tão pouco. Não posso confiar nem em mim nem no nevoeiro que me enche a cabeça. É como se tivesse uma maré vazante na consciência. Uma gana constante de dar um tiro nos cornos. Confio em desenhar-te caminhos na distância que vai entre a tua boca e o teu umbigo. Confio em ficar preso entre as grades do teu cabelo molhado. Não vás. Que me resta, se fores? Sou novo demais para novenas e rosários e a língua já se esqueceu dos padre-nossos e dos ave-marias que me obrigaram a escrever às dúzias e a decorar de boca pronta, como se fosse a burocracia de entrar no céu. Vou ficar sozinho. Farei ainda menos sentido e serei ainda mais teimoso. Com certeza olharei mais o chão. É a desordem que me mete medo. Alguém que mande rezar uma missa por mim.
Se deus houvesse não precisaria de se mostrar. Se deus há só o é porque há homens que dizem que o vêem. E gente, há por aí?
E todos os fotões que resvalam em mim e se afundam nos olhos dos outros? E a força condensada de todas as vezes em que me vim? E as memórias? E as palavras? Não valem nada? Não valem algo. Mas não valem nada. A fogueira que ardeu deixou brasedo. O fogo que me arde no pavio não há-de morrer sem deitar fumaça. E bastará alguém suspirar o meu nome já depois de estar há muito morto e ter estado vivo terá valido o incómodo.

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Dizem os românticos que toda a rosa tem os seus espinhos; os realistas que amam tanto a rosa como o estrume de onde ela cresceu; os crentes dizquem que é a criação e a Coisa e que é um pedaço de deus; eu digo - e as moscas que comem do estrume e nunca passam a rosas? Nunca uma rosa me incomodou, mas por tantas vezes me vi toscamente irritado por culpa de uma mosca. Vale-me por mais ser uma mosca e fazer da causa o efeito, que estar quedo e calado, como uma flor. Com o hálito a merda posso eu bem.

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Procurar o teu sentido como verdade suma é procurar uma agulha só tua num palheiro cheio de agulhas.

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Ou escreves mal ou escreves muito bem. De qualquer das maneiras só podem fingir que te percebem. Nunca te é suficiente. E nada disto importa. Tu escreves, só; sozinho.

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Lo vedo molte cose simili a me in te, nel tuo comportamento.
Quindi hai qualcosa da dire al mondo, qualcosa di bello.
Probabilmente con la musica, o con le parole, mostra quello que hai dentro il tuo cuore, metillo nelli arte.
Si chiama “sublimazione”, tu puoi farlo.
Sublima la tua essenza con l’arte, con la musica! Sorridi sempre, di piu!
Io vi porteró nel mio cuore come un pezzo veramente importante.

Un abbraccio,
Alessandro

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É mais custoso partir que morrer, dito que a despedida da morte é suma e não deixa dúvidas. É tão penoso despedir-me duas e três vezes de ti sem nunca saber se será a última vez. Mas a ausência como que tresnoita no fim da espera, sublima-se, desvanece. Na morte não há ausência porque a falta tão máxima de alguém não se enforma na nossa consciência. Não se aguenta na nossa razão. A morte pode doer menos que a distância, pelo egoísmo que sentimos do outro, pelo descaramento de estar a ser noutro sítio que não no nosso.
É penoso ser noutro sítios que não aqui. Quando não é aqui, tudo enfada, todas as velocidades tocam a mesma moda. O tédio, o desinteresse, o desalento. Toda a irrelevância. Mas talvez Portugal me seja necessário para fazer disto a catarse que é, como martelar um dedo para sentir o alívio da dor a ir embora. (Pena o café ser tão mau e pena que tudo isto seja construído na ideia de deus.) Guardo as saudades como um combustível. E já corroem na ideia de partir, quando ainda estou sentado em terreno sagrado. Ah, mas de que vale ao paraíso ser o paraíso se é mal frequentado? Mas isso, isso são contas d’outro rosário. Por cá ficam bocados de mim. Volto a buscá-los quando o corpo se queixar.


João Biscaia
Taizé, França
22-29 Julho de 2012

publicado por Gualter Ego às 19:07 | link do post | comentar