As gentes deste corrente e malogrado tempo, que vivem da terra e dela se sustentam, por não limparem o cu com o oiro do Brasil, vivem ganindo de fome e a tinir de sede, que comida pouca é e a água é de tão má qualidade e ruim fonte que nem dela se lavam, lavam-se com o próprio suor, fosse esta gente gato ou cão e lamber-se-iam para se aprumar, mas língua de homem não chega a todo o sítio e assim se vive, penteando-se o cabelo antes do jantar com cuspe, que lá por sermos pobres não somos nenhuns gandins que não se ajeitam antes da hora sagrada de comer. Passando a mão pelo suor da testa, solenemente se lava a cara, para que a palidez da fome na face se distinga do restante corpo encardido, que já tem poeira até aos ossos.
Na água da fonte só molham os lábios, para enganar o corpo, preferem beber do vinho ou da aguardente, que se for da boa arde na garganta pior que brasa na pele e assim se matam as eventuais chagas de corpo ou de mente.
A morte vive ao lado desta gente, partilham com ela a cabeceira da cama, ou a esteira no chão onde dormem os gaiatos, ou então dorme no palheiro ou no curral, mas ela por lá anda, seja por onde for, onde houver pessoa, matreira, como cão de guarda, empurrando, coitados, os miúdos sedentos que se debruçam sobre os charcos de água enlameada e com as mãos fazem concha e de lá bebem e depois morrem de febres e de diarreias, desfazem-se em merda, os catraios, Deus tenha piedade destas alminhas que se vão sem sequer terem idade de pecar, braços que mais parecem galhos de Outono, a pele das bochechas agarrada ao crânio, os olhos encovados, melhor assim, poupa-se-lhes uma vida de cão.
É todo um calvário, esta vida de pobre, do buraco primeiro, ao buraco último, a cova onde se irá depositar o cadáver, a morada derradeira, a ironia de viver uma vida inteira, quase quarenta anos, com fome e depois de morto servir de festim às larvas, os sete palmos abaixo de terra onde se irá sepultar a dita rija e serena carcaça, se honrarias dessas houver, muitos há que são atirados insepulcros para pântanos, nem que se diga apenas um padre-nosso e se espete uma cruz de Cristo à cabeceira da campa, para não se ir para o mundo de lá desgraçado de todo, depois faz-se algum luto pelo pai de família que morreu esmagado pelo carro dos bois, mas a vida continua, o filho mais velho é agora o homem da casa e tem de sustentar a mãe e cinco irmãos.
Os filhos, lá está, esses, fazem-nos às meias-dúzias, sem saber o que se lhe há-de dar para enganar a fome, não comem cinco, não comem seis, não é problema grande, mais dois braços para a seu tempo irem para a eira ganhar uns trocados. A culpa é dos homens, que no instinto primordial da carne chega-se a noite e parecem bois de cobrição picados pela mosca, sobem à mulher em tamanha brutidão que ela nem ousa dizer que não, confundem-se os corpos sujos e fedorentos, cumprem-se os labores de procissão, misturam-se fluidos e suores e bafos a vinho barato de pipo seboso, suspiram os corpos e pronto, lá fica a semente do diabo plantada no útero maldito desta mulher, que há-de parir um filho maldito numa hora maldita, pois qualquer filho que por este tempo se faça é feto amaldiçoado desde o início dos tempos para aqui vir ser parido, seja feita a Sua vontade.
A culpa é das mulheres, não tivesse Nosso Senhor as feitos tão formosas e apetecíveis, cheias de carne e curvas, tão falaciosas e traiçoeiras quanto Eva, e assim, por Eva, se têm as dores excruciantes de parto, dizem elas, que eu sou homem e o meu único trabalho é fazê-los e sustentá-los, não é pari-los. Menos de nove meses depois salta cá para fora mais um anjinho a berrar de vida, magro que nem um cão vadio, fruto de um levantar de saia imponderado e fortuito. Morrerá antes de conseguir sequer dizer que é vivo. Seja feita a Sua vontade.
Por este tempo não se vive, espera-se pela morte. É a comida a encurtar e a fome a engrandecer, é toda uma carestia de vontades, não há sequer o prometido pão-nosso de cada dia, nem que fosse uma carcaça de pão de anteontem, duro que nem cornos, molhava-se no caldo, estava o problema resolvido, mas nem côdea rançosa, nem um pedaço de sardinha, nem sequer a cabeça da sardinha, até os podengos d’el-Rei se alimentam melhor, comem pão molhado na gordura da carne, ai, se o nariz comesse, ai se olhos comessem, mas não, nada, e aqui se está, fatigado de fraqueza, sem forças sequer para respirar e o estômago colado às costas.
Todavia, todo este povo vive numa paz de alma que só se vê igual no reino dos Céus, por entre os anjos e arcanjos do Senhor. Prometem-lhes o Paraíso, um lugarzinho reservado na vivenda celeste. Pobre que nada tem, nada tem que possa perder, é pobre mas é livre, nada o prende à terra, e mesmo se algo o prendesse, quando morresse deixava cá tudo.
E assim vivem contentes, mesmo levando desta vida apenas porrada e miséria e as tripas a revolver de fome, porque sabem que se vivem mal, na próxima vida do mundo de lá irão viver uma vida eterna de riquezas e sobras. Vivem contentes com a esperança de uma nuvem fofa e quente onde dormir, no Paraíso, embalados pelas doces harpas dos anjos. Vivem na fome e não se importam, pois se morrerem absolvidos dos pecados irão ter banquetes maiores do que os que se vêem nas cortes do reino, dizem os frades às escondidas, e que oiro nenhum pode comprar. El-Rei diria o contrário, que ele é, pela Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc., e se bem lhe aprouvesse podia armar um banquete tal que até aos olhos de Deus fizesse inveja.
(Diz-se, até, que deu a Deus uma fome de insónia, no princípio dos tempos, e tirou uma costeleta a alguém com o pretexto de lhe fazer uma companheira, quando todos sabem que nada disso seria necessário, visto que a Deus tudo é possível.)
O problema maior é que pobre, e digo pobre sendo nome em vez de adjectivo, não tem dinheiro e, assim, não paga a dízima e vai arder nas chamas eternas do Inferno. Seja feita a Sua vontade.
Tudo é suor, pus, cuspe espesso e escarro nojento, ganir de fome e de piedade divina. Não se fez o Homem para isto.
Vera de Santo António, camponesa de peitos fartos e voz tremida, aparentemente ingénua e fraca, com olhos negros de carvão, cara redonda e sobrancelhas arqueadas para dentro da cara, como se estivesse sempre desconfiada de tudo, acaba de parir o terceiro filho, fruto do casamento com Miguel de Santo António, sapateiro bêbado.
O primeiro filho, que era uma menina, morreu-se-lhes antes de ser parido, porque não se pode nascer morto, e o segundo, José de Santo António, catraio esguio com olhos rasgados, negros como a mãe, cheio de remoinhos no cabelo, a fazer lembrar os cabritos antes de se lhes nascerem os corninhos, que viveu o suficiente para ter nome, tem agora dez anos. É franzino, mas já cava terra e acarta calhau de palmo e meio.
O bebé que nasceu é menino, também. Nasceu a chorar como a maioria, como se soubessem ao que vêm, rechonchudo e vermelhão, é bom sinal. Prontamente se agarrou à teta de mãe como quem se agarra à vida. Miguel de Santo António tenta não olhar para esta cena, não lhe vão dar ganas de fazer outro e de depois ter de lhe pôr pão na boca.