De Deus e da morte não se tem contado senão histórias, e esta é mais uma delas.
- José Saramago, As Intermitência da Morte
Deus, nomeado em honra do avô paterno, num intervalo alargado entre um e outro festim divino, achou por bem, depois de tanto tempo alheio ao conversas e rumores, ao ouvir um sussuro de um anjo sobre um tal de espectáculo celeste, descer à poeira terrena ver um pouco do seu trabalho supremo e mirar as estrelas. Sim, Deus, vai fazer agora dois mil e onze anos, mais coisa menos coisa, veio cá abaixo, curioso, ver se era mesmo assim tão bonito o que diziam ser, o céu nocturno, os buracos que fez na caixa do Universo para entrar um bocado de luz e ar, que os homens chamam, não se sabe porquê, estrelas, e achou que sim, realmente tinha feito um trabalho soberbo, o seu pai havia de ficar orgulhoso. Deixou-se estar mais um bocado e ainda hoje se fala de uma tal Maria que ele levou para a cama e do filho que ele não se deu ao trabalho de perfilhar. Mas isto são as pessoas que falam e as pessoas gostam de falar.
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Todo o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, mas um foi mais que os outros todos, Baltasar Sete-Sóis, por ser maneta como Deus - tanto quanto diz o Padre Bartolomeu Lourenço.
Diz o Padre Bartolomeu Lourenço que Deus não tem a mão esquerda, pois porque está tudo a sua direita, o Filho, os arrependidos, os reis e os justos, tudo tudo do lado direito, e então à esquerda só pode estar um abismo eterno, uma força imensa de não estar, a tão sinistra e clamada ausência que está à esquerda do Pai, sinistra de procissões, clamada por exclusão de partes.
Pois que estava Jesus na glória eterna sentado à direita do seu Pai, ainda não jantados, petiscando uma asinhas de anjo caído, discutindo política à volta de uma garrafa de Porto, ambos fumando do seu cachimbo, falando das plantações e das novas invenções, Deus contando ao filho que tinha, sem querer, tossido com pujança para um pedaço de barro, misturou-se o divino código genético no pastiche argiloso húmido e saiu-lhe uma coisa parecida com ele, mas mais pálido e torto. Que agora não havia nada a fazer, para apagar aquilo tinha que fazer reset ao Universo inteiro e já tinha gasto quase uma semana só com aquela brincadeira, lá tinha que ser, poderia acontecer sair alguma coisa boa dali.
Estavam os dois, pai e filho, neste lindo convívio fraterno, sai-se Jesus, barba acabada de desfazer e cabelo cortado à escovinha, isso são histórias para outra altura, com esta fatídica informação:
- Pai, tenho fome.
Deus anuiu com a cabeça, disse que sim, realmente já se trincava qualquer coisinha, mas que o chef tinha metido baixa, há dois dias que estava a sandes de presunto e vinho, e depois de um silêncio longo, Deus levantou os olhos, inspirou com confiança, foi buscar um casaco, não se vá o arquitecto constipar, e disse:
- Filho, espera aí um pouco que eu vou lá abaixo ao Éden tratar de umas coisas e passo num sítio a trazer umas costeletas para fazermos um churrasquinho de estalo.
E Deus, como desculpa, criou a mulher.