A Bout de Souffle (1960)
Li que sousa, de letra minúscula, sem conotação de nome próprio ou herança nominal de família ou gentílico por apelido, é o mesmo que dizer pombo bravo. (Aos menos sabedores se digna este parênteses: pombo bravo não significa um pombo valente e corajoso, mas sim um pombo que é selvagem.)
Ironia é quando sousa é apropriado ao se achar nomes jeitoso de se pôr em alguém e sai João Sousa, ou Ambrósio Sousa, ou qualquer coisa que o valha. Ironia, porque por mais bravo que seja o pombo a quem se dá o apelido de Sousa, depois de ficar o nome rabiscado em letra ilegível de notário, carimbado para provar a sua autenticidade, lá no Registo Civil, o pombo passa a ser mais um número, uma ave de aviário, cativo que come as migalhas que lhe estendem as mãos enrugadas, torna-se contribuinte e eleitor, são os seus deveres, e consumidor, está no sangue - de que nos vale um nome e uma pátria, se perdemos sempre esse sufixo, bravo?
Ora vai de comer com as mãos e lavar-se com a língua!
E tratam-nos como animais de trazer por casa.
Sonho - e não sou menos homem por sonhar, muito pelo contrário, sonhar é que nos faz Homens; e então eu serei três ou quatro.
E se por lirismos ornados de métrica imedida, escorrendo seivas e néctares de deuses menores, conto os meus sonhos, certamente perdoar-me-ão os sujeitos mais analíticos e enfadonhos, que tanto posso declamar sonetos ao luar, em honra de mais bela musa de cabelos encarnados, como fazer rimar uma equação.
Uma pequena lição, meninas:
Pedirem respeito por usarem saltos-altos e depilarem grande percentagem do vosso corpo - ou seja, sucumbir a padrões capitalistas de beleza que nunca são questionados - não vai ter o efeito por vós esperado (que é o de serem respeitadas, ou, de certa forma, serem vistas como seres humanos com poderes sobrenaturais, vindo isto do facto de sangrarem durante seis dias dos genitais e não falecerem); apenas se vai ouvir todo o movimento feminista a desmoronar-se naquele exacto momento. Fica a dica.
Obrigado.
Algo há nos gatos que me compele. São de uma natureza boémia evidente, arrisco-me a dizer clerical (por viverem fartos e bem-dormidos), que me transcende e me maravilha, por viverem tão ignorantemente e altivos, alheios, indiferentes - resignados, talvez. Gosto de gatos porque é fácil eu me ver no seu pêlo fulvo, na atitude crispada de uma ignorante alma despreocupada. Gosto de gatos porque comunicam de uma maneira que nenhum cão é capaz de igualar e não se apegam a nós como esses rafeiros de alçar a pata. Os cães, é simples, acham que nós somos os seus deuses, por lhes darmos comida; os gatos acham-se deuses pela mesma razão. Falta falar das relações sociais: gato é bicho solitário; e quando vai às gatas solta grunhidos e volta arranhado e manco. Um pouco como eu. Sem falar que eu não sou muito bom em conversa de ocasião - mais fácil seria pedirem-me que cantasse um fado - e as relações sociais triviais e por obrigações profissionais ou de interesse, mais os inerentes contactos humanos superficiais e os grunhidos histéricos de uma adolescência em flor, a ferver em clichés e hormonas, se me dão micoses em sítios impróprios de coçar em público. Sinto muitas vezes que sou a minha melhor companhia, e um bicho indiferente que entretém e ronrona será, então, a minha segunda melhor companhia.
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Tinha pouco mais de 3 meses, o raio do gato, focinho pontiagudo e olhar de raposo, sempre desconfiado e longínquo. Ainda brincava com os adornos soltos dos tapetes da sala e ainda se me saltava aos calcanhares. Poisava-o no meu colo e em três tempos adormecia, mole e molengão, quase como se morresse. Com a preguiça nunca cheguei a lhe dar um nome, mas sempre soube que se chamava Xavier. Morreu. Como se fosse uma sádica ironia, sucumbiu às custas do seu instinto caçador básico de felino furtivo - regalou-se comendo um rato gordo de sangue escuro que deveria estar envenenado pelos metais pesados encontrados nos comuns raticidas espalhados pela loja onde se guarda o milho e, claro está, morreu também. Foi uma dor d'alma; uma criatura tão ingénua e pura, que nem devia saber que era viva, nem porque dava por si a afincar o dente no roedor caseiro, morrer de morte tão sofrida e imerecida. Prostrou-se ao lado da grande palmeira que gostava se trepar e lá ficou, todo esticadinho. Tinha uns grandes olhos verdes, era como os filmes antigos, salvo seja, era de pêlo monocromáticos, prontos, preto e branco de camuflagem, com o tradicional triângulo de pêlo níveo entre os olhos, de raça assim mesmo. Já roía ossos que nem um podengo e divertia-se a caçar moscas. Quando, de madrugada, eu assaltava a cozinha com fomes tardias, mal ele ouvia o gentil sibilo da faca a sair do do faqueiro ou o som lânguido, aveludado e borbulhante do leite a ser entornado na caneca, empurrava a porta com brutidão e entrava cozinha adentro de focinho e rabo alevantados, este último mais direito que o mastro de um navio, qual Simba dos jardins, e exigia em miares silenciosos, quase de tão sôfregos que eram - que bons actores dramáticos são os gatos - o seu pirezinho de leite da praxer ou, quando a altura se dignava a luxos, um pedaço de toucinho fumado. Fiquei com pena de ter ido tão cedo, o Xavier. [desenho de um gato com a representação onomatopaica do som naturalmente emitido por um gato]