03:46
Boa noite, amável cliché.
Olá?
És tu que vens comigo neste comboio?
Vamos, então, de mão dada.
Nos bolsos, quase nada.
Umas moedas trocadas,
E o tostão furado da fome que tenho.
Vamos sem sequer chegar a partir,
Porque lá chegar não implica ir.
Esse Jorge de quem falas,
Tinha mãos de pianista?
Acho que sei quem ele é,
Tal como eu é masoquista
E mais quer ser desenraizado,
Que ir embora e ser consumado.
A cobra do desejo e do pecado, aquela do Génesis, está a morder o pássaro da razão.
E a razão nem sequer esperneia.
Sabes porquê?
Porque desejo todas as tuas células, vivas ou mortas, e o fogo do teu cabelo; porque é o meu corpo que te quer, os meus dedos, os meus olhos, ouvir-te, os meus ouvidos, cheirar-te por dentro, o meu olfacto.
Sou embriagada alma em busca de embriagada inspiração. Não a aches menos genuína por isso, a inspiração, que a verdade é minha tanto quanto eu quero que ela seja verdade.
Ilusão? Talvez não. Talvez seja o desejo que se esconde. Ou a chuva que cai e a carne que quer. Não, não é ilusão; é o que a carne quer. (E o que a carne quer não se discute.) E a carne vai comandando a alma, pegando o leme com mãos firmes e calejadas, porque tudo se resume a frágeis palavras que a razão enfraquece.
Tudo é mais genuíno, e esta lágrima é por mim, que teimo em escrever o que acho ser mais feio embora puro, não querendo sublinhar o ego, que, chuvoso e embriagado, que embriagado apenas se quer escrever, é nulo e morto, por ser vivo no nada.
Creio, pois, que o fim será quando os vermes decidirem comer a minha carne e limpar os meus ossos; à merda voltaremos, porque merda, pensante e andante, nós somos. Mortos-vivos, vivos-mortos, devorados por vermes metafóricos, até que baixaremos à terra, a sete palmos do cimo, nossos imundos corpos e os vermes passarão a ser verdadeiros e hão-de te morder sem te doer.
Sou já morto, mas não o sei e ninguém me perguntou "rico menino, quereis nascer?"; só morro se alguém disser: merda, ela ainda agora estava vivo e respirava, e agora está rijo, pálido e parece que já não respira.
Encontro-me, porém, conformado (talvez consumado), porque o além a que aspiro, e todo o além que encontro, encontro-o nas curvas de uma mulher.
Mais vale viver, numa mulher e no seu corpo, sem o saber, se morrer é luto e memória e nada mais.
Morrer é luto e ser velado, porque em alguém fomos vivendo; é uma certidão de óbito. E se ninguém me vir morrer, se ninguém se vestir de preto ou se lembrar que vivi, morrerei? Creio que não, pois nem para a mãe que me pariu cessei de viver.
Só morro em quem me ama e em quem me quer, porque tais gentes sabem tudo o que não sou. Ouviram, já, a minha voz e sentiram, que não fosse de gracejo ou de puro desejo, o calor da minha pele.
Que sou eu? Eu, menos que pensamento, memória, verso e rima? Vã realidade carnal que não ultrapassa as metafóricas levezas do ser. Ou não tão vã assim, essa realidade carnal, enquanto viver para a mulher, o seu olhar e os seus cabelos, enquanto isso me bastar.
Deus não estará morto, como matéria que se faz ver. E se Deus for o Mal e a Morte, exijo que seja o coveiro o primeiro a morrer.
Julgo que na morte não chamarei por Ti, nem por teu filho. Se o fizer, tanto melhor. Poeta que seja descrente é poeta falsificado.
Se houver retrato teu,
Que faça justiça às gotas de tinta
Com que foi pintado o teu corpo,
Terei sido eu o artista,
Que por detrás do pincel,
Terá, na tela, desenhado,
Tanta beleza,
Tanta pureza,
Tanto amor, na certeza,
De que amar é mais do que o amor nos diz,
É estar cego e pintar todas as curvas,
Daquilo que dizes que és, não o sendo,
Da mesma maneira, em ti morrendo,
Todo o fogo que,
Em ti gemendo,
Vai queimando a lenha que eu sou?
O cigarro que te fumou,
O ventou que te levou,
Dente-de-leão, túlipa desencarnada,
Vai brincando com a fotografia
Que o meu amor tirou.
Não há nada como um gole de porto,
Para acabar com a frieza,
Da língua presa,
Que por ti teima em chamar.
És tu que fazes a chuva cair.
És viciante e destrutiva.
És, apenas por ser,
Estás viva.
E que melhor razão para ser,
Do que ser?
Lá do alto, se voamos, parecemos formigas.
Cá em baixo, lutamos por não parecer formigas. Ou então esbracejamos por o ser, sem saber no que nos iremos tornar.
Sou o rival mais fraco de todos os homens que querem tocar a tua pele de porcelana.
Primeiro as pálpebras, depois a seda dos teus lábios.
Agora a carne onde penduras o ouro frio e a prata sem valor.
Desço até onde permitires,
Até onde me ofereceres tanto e tal calor.
Alice,
Sei que talvez adormeceste.
Mas esse país em que,
Por momentos que seja,
Tu viveste,
É tudo fruto da droga,
Que na mesa de cabeceira dos teus pais,
Tu roubaste.
E nem achaste,
Que tal furto seria imoral,
Nem que a droga te traria sonhos tal:
Um coelho que abusa do café
E uma lagarta que vai fumando o ópio
Das tuas alucinações,
Alegres ilusões.
Porque és loira,
Vestes vestidos de renda
E uma fita no cabelo.
Nunca saberás o que é querer um homem
E, por fim, por seres tão pequena,
Querê-lo,
Amá-lo
E fodê-lo.
Demorou o que tinha a demorar,
Disse pouco do que tinha para te dizer,
E para mais não querer perdoar,
Vou-te dizer que não quero mais morrer.
Desculpa-me tal desnível:
Sou uma besta sensível.
O seu olhar convenceu-a. A fogosidade dos olhos dele, Morte, nome pelo qual respondia, apenas arranjava rival nos seus cabelos ruivos, labaredas em cascata pelas suas costas.
Ficaram bastante tempo olhando-se nos olhos, como tentando decifrar o que as palavras tentavam dizer através do olhar. "Je t'aime, je t'aime pas! I love you, I love you not!", como se o amor importasse ao que o desejo concerne. Mas a corte continuava, e a Morte, que lhe passava a mão pelos seios, fazia desaparecer todo o pudor da carne humana, como um espelho que se parte, e o nu passa a ser vestido, porque a carne é a nossa genuína roupa.
Beijou-lhe o frio dos ossos e disse "Amo-te". Morreu sorrindo, porque se entregou ao quente amor da cova que a entregava às larvas que lhe comerão a carne e lhe limparão os ossos. Morreu amando, porque a Morte a seduziu no quente amor do vinho e da chuva.
Todo eu sou tacto,
Porque todo o eu te quer tocar.
Mas toda a distância que nos separa
É boa rima para eu cantar.
Por que é que o destino
Me faz te amar,
Se longe e intocável,
Mais longe que a mão que te quer beijar
Eu te posso tocar?
O feitiço do fumo
Das curvas, da carne,
De tudo o que te faz arder
Em meu humilde e quase puro pensamento
É, em mim,
Mais que desejo carnal,
Genuíno desalento.
Desculpa,
É o vinho que fala por mim.
Mas, pensa, pensa bem,
Considera-te, esta noite,
Mais que corpo amado,
Mim, eu, moi, je,
Embriagado, mas sincero.
Amo o que ao olhar fascina,
Não o que quero.
Demoro-me em juras de amor,
Como se para alguma coisa fossem de real valor.
De ti, meu amor,
Quero todo o silêncio, toda a carne,
Todo o amor.