Desgrenhado

Ele não está tão bêbado como pensa estar, nem tanto quanto gostaria de estar. A doce seda ardente, fatal veneno, que lhe aquece as veias, não entorpece os sentidos, nem aguça o engenho, para desgosto. Mas, se assim fosse, a corda não lhe pesaria à volta do pescoço e as pálpebras arrastar-se-iam como portões enferrujados, até aos cobertores pesados da cama.

Esta tão bem orquestrada mentira vai envelhecendo na penúria de espírito; um lugar-comum irritante que não passa de um pastiche, na vontade de se glorificar com a morte precoce, falsificada bondade oferecida a si próprio, justificando um altruísmo cego, que lhe vai corroendo a carne, os ossos, os dentes, por fim, a alma.

O sentido de desorientação favorece-lhe a rima inocente: habituou-se, rodando num ciclo vicioso à volta de um paradoxo perpétuo, a satisfazer as premissas que teimam em o adjectivar. Acha-se, agora, uma nulidade imaterial, obsoleta, porque, diz ele, nasceu por engano, e enganado, e foi lançado para este mundo nojento e frio, nu e desamparado, na imutável encenação que é a vida humana, achando tão pequenos os seus actos como um dente-de-leão num furacão.

Este seu ego inflamado é a metáfora para a tranquilidade inquieta que encontra em tudo o que é som, cor e textura; uma chávena de chá, uma noite de céu limpo e salpicado de estrelas, uma noite chuvosa, uma caneca de café. Sobretudo, vive desgostoso por não lhe poder segurar o corpo, tão cristalino e frágil, porque algo tão divino não deve ser roubado por uma qualquer libido em chamas, por qualquer par de mãos leigas e destreinadas nas lides dos amores carnais e infernais, sonhando, porém, em sustentar, um dia, nem que seja o peso dos seus lábios. Ele quer ser tudo, em toda a gente; perfeição e caos, balbúrdia e calmaria, a perversidade rimante de tal amor, um soneto sádico e apaixonado. Ele quer a plenitude, mas tudo o que tem é um copo meio-cheio de nada, uísque velho, sem gelo.

(Ele quer ser Deus: estar em tudo o que é sítio e em lugar nenhum; amar uma pedra tão grande que não a possa suportar.)

Todo este discurso pessimista é escrito nas curvas do corpo que se contorce, debaixo dos tais cobertores pesados, à luz de uma vela curta e fraca, de pavio velho e amarelo, a determinadas, porém desconhecidas, horas da madrugada, quando as traças e os mosquitos já se tinham cansado de atacar a fraca luz do candeeiro de rua, porque a arma encravou e teimou em não disparar. O cigarro poisado na beira do cinzeiro, vai consumindo mais que ele mesmo, consumindo o tempo, a hora de dormir e as histórias para adormecer que ficaram por contar.

 

Will we ever get together in a song?

publicado por Gualter Ego às 01:46 | link do post | comentar | ver comentários (1)