Sexta-feira, 29.10.10

Old Spice.

Este texto foi originalmente publicado, por mim, no blog Ouvir. Passem por lá.

 

A primeira coisa que faz quando se levanta da cama, cujos lençóis se vão despregando e enrolando ao longo da noite, nos turbulentos sonhos de um adolescente enganado, é consumar o acto, meio automático, meio sonâmbulo - sete e meia e as pálpebras pesam como chumbo - e pouco ou ciente daquilo que se está fazer, de levantar o tampo de sanita e mijar - com certeza que os mais conservadores me perdoam o termo - como quem dá graças a Deus por um novo dia, neste ritual rotineiro das manhãs mal acordadas, que procedem as noites mal dormidas.

Rodou o manípulo da torneira, completamente alheio ao facto de ter rodado o da água fria, e lavou a cara com cerimónia, tirando as ramelas, abrindo os olhos ao máximo, com esforço, olhando-se ao espelho, ajeitando as sobrancelhas e esfregando os olhos. Vestiu umas calças de ganga e uma camisola de mangas curtas, não se deteve a passar o pente pelo cabelo e, as meias, calçou-as com custo. Nada de Patchouli ou Old Spice e não é como o Jim Morrison: bebe uma caneca de café, em vez de uma cerveja, ao pequeno-almoço. Não veste, nem sequer possui um blusão de cabedal, quanto muito uma flanela do grunge esquecido, um esforço vão em querer sentir-se menos enganado por ter nascido tão tarde. Não tem um Mustang, anda a pé; enquanto desce a rua, apertando o casaco, troca o passo, mete as mãos nos bolsos, inventa que cheira a Old Spice e que tem vestido um casaco de cabedal engraxado, cabelo lambido, olhando para ninguém, sorrindo matreiramente, em jeito de flerte, com o vento gelado das já oito da manhã a corroer-lhe a carne noviça e tenra, cheio de sono e cansaço.

Antes de virar a esquina, é um homem, sem ser homem, perdido em tempos modernos, uma antítese, um anti-herói, fraco e desarranjado, que inventa um sonho e lhe dá uma metafísica concreta, tão genuína que se perde em si próprio, só para se encontrar, na esquina já virada, de cabelo desgrenhado, de volta ao mundo real, onde é um jovem desproporcional, que nasceu para encontrar um mundo em desgaste, que o desgasta a ele próprio.

E, enquanto não era virada a esquina, ia repetindo os versos e o refrão de uma canção, fingindo que tocava guitarra, mexendo os lábios ao ritmo palavras do cantor.

(Doces ilusões que nos proporcionas, tu que és mais que sons, Música.)

publicado por Gualter Ego às 19:28 | link do post | comentar | ver comentários (4)
Terça-feira, 26.10.10

Uma ilusão imutável, que é o saber.

Um gato só é feliz, se o for, porque não sabe que o é. Um homem é triste porque pensa. Um homem é triste porque sabe, ou acha que sabe, e, mesmo não sabendo ou se não souber, questiona aquilo que sabe, se alguma vez vier a saber alguma coisa, falando a língua do fatalismo ferrenho, elevando-se ao inexistente; à nulidade de uma ilusão imutável, a razão. Não reconheço que sou, de existir, nem em frente a um espelho, pois sons aleatoriamente dedilhados não são música só porque são ouvidos.

O inteiro não é a soma da partes. Curiosamente, eu sou a soma de muitas partes.

publicado por Gualter Ego às 22:52 | link do post | comentar | ver comentários (9)
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