40.
Larga-me!
Não se vê, nas larvas, o luto, de quem presta homenagem ao que cessou, a quem morreu. Vês sim, nas larvas, a fome de carne falecida, empodrecida. Paras elas, reduzidos ao todo pouco que somos, seremos todos iguais: alimento, festim, banquete. A madeira do nosso caixão, inquestionável tradição funerária, atrito ao seu apetite voraz. Ao pó, vamos, porque do pó viemos, filhos da lama, feitos de barro, carne fria e fraca, que se perde nos olhares mais convidativos.
Não importa como viveste, nem como morreste, no fim, és comida de insecto.
Quase que te adoro, como um deus, em minhas palavras, quando tudo o que eu sou é cobardia, e nada mais eu digo, senão aquilo que vejo na rua, nas caras e nos corações dos que passam. Eu não existo, recuso-me. Eu não resisto, entrego-me, recebes-me. O meu corpo é informal e cheira a ti. Antes, foi a morte tudo o que eu pedi, agora, só peço lume.
Tens lume, perdição?
Sinto-me vivo.
Reduzido, fumado,
Humilhado e esquartejado.
Não quero ninguém
Ao meu lado,
Senão um outro meu eu.
É amargo,
Esse teu calor.
Esse teu beijo,
Foi escuro, sem cor.
Je veux pleurer.
O meu mundo encheu-se de dúvida, quando te vi. Há muito que tinha perdido a vontade de falar, de escrever, de respirar, de morrer. Há muito que mentia ao mundo (ao meu corpo, até), omitindo tudo o que me diziam as lágrimas. Como te amo, aqui, assim, a toda a hora, à luz da lua, eu, ingénuo passageiro deste comboio escuro, pálido e mórbido, que cheira a mijo e a nojo, chamado vida.
Desejo.
Um desejo intocável tirava todas as forças que restavam no seu frágil corpo feminino. Tudo lhe relembrava o toque da sua pele, o seu suave cabelo negro, os seus dedos, que pegavam em uísque ardente com tanto carinho como ele lhe tocava mais que a face, o coração. Perdeu-se, por fim, nesse seu amado uísque ardente. Roubou, a si próprio, a vida que lhe foi dada, em jeito de presente irónico, como o álcool que lhe aguçava as palavras e lhe ofuscava o caminho.
Toda esta história, terminou com um sabor salgado a lágrimas dolorosas, que caíam, nos lençóis, em câmara lenta. Bebeu, de um trago, um copo do mesmo uísque em que ele, parte de si, se perdeu e encostou o revólver à cabeça.
Ouves os meus passos?
Os meus olhos procuram-te, inquietos, pelos cantos desta sala poeirenta. Acaba com o meu despero. Mata-te!, ou mata-me.
Amor, amor, amor!
Mata-me. Rompe-me a carne.
Sangue.
O meu corpo transpira medo e revolta, entregando-me a ti, ás cegas.
Os lençóis de cetim acariciam-me a palidez do peito e das pernas, que contrasta com a escuridão e a perdição da fonte em que há muito tempo esperas por beber. A frieza das tuas mãos ásperas, alimentado-se nos meus seios, arrebata o meu pudor, arrepia tudo o que eu sou.
Quero-te, finalmente, alheia à razão e áquilo que ela me diz, dentro de mim.
Luzes, cor de âmbar, alumiam a tua carne, fonte dos meus desejos carnais mais nojentos e mais puros. Isto que me aquece o sangue, aqueceu-o a muitos outros; fogo que se balança sobre mim. Por que é que a sobriedade traz tantos dilemas, se quando assim estás, como eu, livre e apaixonado, se vê o mundo desfocadamente belo, ao ritmo dos carros que passam?
É meia-noite e tu suspiras comigo.