(?)
Esta dor, este fogo, este não estar bem em lugar nenhum e estas palavras, significam que estou vivo, ou que morri sem saber?
Tenho as mãos frias e o coração apagado.
Esta dor, este fogo, este não estar bem em lugar nenhum e estas palavras, significam que estou vivo, ou que morri sem saber?
Tenho as mãos frias e o coração apagado.
Ela agradeceu com um sorriso, de olhos fechados, cabeça encostada às costas do sofá, quando comecei a tocar sua música preferida. “Michelle, Ma Belle”, dos Beatles. Sempre me custou um pouco, tocar esta canção, mas hoje, já com os olhos a ver o mundo desfocado, por causa da garrafa de vinho que tínhamos acabado, e daquela outra que já ia a meio, os meus dedos, a minha voz, o meu corpo, inteiro, estava mais solto, desprovido de pudor.
Estávamos às escuras, sem o romantismo cliché do amor tímido à luz das velas.
"Michelle, ma belle, sont des mots qui vont très bien ensemble."
Só a inocente luz da lua que entrava pela janela, e que dava uma cor azul ao quarto onde estávamos, lhe tocava, mais do que eu alguma vez eu lhe consegui tocar. “Até a sombra do teu corpo é perfeita…”, disse-lhe eu. “Até a tua própria sombra”. O fumo dos nossos cigarros misturava-se, enrolando-se com a música que pairava no ar e que eu continuava a tocar gentilmente, numa dança cheia de cumplicidade.
Findou-se o que havia para cantar. Abriu os olhos e passou-me os dedos pelos lábios. Bebeu, violentamente e de um trago, o vinho que restava no teu copo. Beijou-me, nesse verdadeiro momento, e a sua boca sabia a vinho.
E enquanto me beijava, começou a chorar. E cada lágrima era um “Amo-te!” segredado ao ouvido. E, aí, chorei também, porque também a amava, ou por mais que a queria amar, fingia que amava. Nunca fui um homem, nem nunca quis ser um homem, mas tu fizeste-me sentir algo mais do que aquilo que eu era, algo mais que aquilo que o meu corpo conseguia suportar.
A ti, brindo com este copo de vinho e saúdo-te com estas palavras melancólicas, nostálgicas e temperadas com o torpor de quem já bebeu mais do que devia, estando sozinho, abandonado, vazio. Sentindo-me quente e enlouquecido pelas memórias. Esta noite, sou vento, páginas de um jornal do dia que chegou antes de ontem.
Só e sozinho, cansado.
Dedicado a alguém já especial, alguém ruivo e transcendente, Adele Schülze.
Ah, sangue quente, como eu gosto de te sentir escorrer pelo meu queixo, chegar ao meu peito, em toda a tua cor encarnada, deslizar pelos meus braços dormentes e pingar dos meus dedos.
Bebo-te, com prazer.