Júnior, o Cão (ou Postal #1)

Não gosto de cães. Pelo menos não tanto quanto gosto de gatos. Não, não gosto mesmo de cães. Não gosto, pronto. São parolos, cagam ao desbarato, mijam(-se) em todo o lado, rebolam-se no estrume e na merda que os outros cães cagam ao desbarato, são atabalhoados, demasiado submissos. Latem, guincham e ladram sozinhos às 4h da manhã. Às vezes, cheios de cio e ganas, juntam-se três ou quatro na mesma rua em sinfonia rouca que fica a ecoar nos ouvidos - pior que o baque seco do martelo do vizinho - que não deixa as pessoas dormir. Lambem os colhões e não o escondem de ninguém, a sua forma de dizer olá é cheirar o recto do outro respectivo canídeo em busca de, apenas e só, fornicação para a procriação. Não gosto de cães. Enchem tudo de pêlo, babam-se, excitam-se se lhes afagam a pança. Não os suporto. 


Surpresa - esta pequena história é sobre um cão. Um cão chamado Júnior, com um focinho de jeito e maneira tal que o faz parecer logo, à primeira vista, um animal simpático e inteligente, de pêlo longo e ondulado, espesso, castanho-russo-ruivo brilhante em dias de estio, um pouco murcho nos Novembros e Dezembros de todos esses anos que passaram. Também com a idade se lhe foi murchando a ruivez natural da pelugem, assim como se me encheu a cara de minas terrestres, perdão, acne ou os meus olhos foram ficando mais amarelados. Era, ipso facto, um cão esperto e cheio de vida - por vezes, quando o chamava e ele vinha apressado deitar-se de papo para o ar aos meus pés, podia jurar que o via sorrir. Sério!
Júnior, o cão, existe desde que eu me lembro das coisas existirem, ou seja, desde a pequenez de uns singelos quatro ou cinco anos de idade. É ele o cão duma das minha vizinhas, não vive paredes-meias mas vive ao fundo da rua, isto de aldeias é assim, é-se vizinho até onde for aceitável ir pedir uma colher de fermento, vizinha essa que tem uma filha com certa idade, uma certa idade parecida com a da minha irmã, já contam ambas com vai para mais de vinte e quatro anos, crianças dos anos 90, nunca paravam quietas, para cá e para lá entre a casa de uma e a da outra , folheando revistas Bravo, suspirando pelos Backstreet Boys, usando-me, inocente criança indefesa como figurino de roupas novas ou cobaia de cosméticos, provador oficial de lanches duvidosos, sempre a personagem masculina nos joguinhos que faziam a imitar as novelas, fazia de macho latino na alta pequenez dos meus já ditos 5 anos, não é para todos. Pior que tinha de passar pelo tal cão enorme, peludo, de orelhas prodigamente felpudas, mais fulvas que o resto do corpo, com uma gravata de pêlo branco a descer-lhe desde os papos até ao bucho, para entrar em casa da minha tal vizinha. Chorava sem me dizerem nada, bastava ouvi-lo ladrar, tinha medo dele, cheguei a mijar-me uma dramática vez em que minha mãe me mandou ir buscar uns ovos à tal vizinha e, distraído, passei pelo escadario pequeno da entrada sem pedir permissão ao bicho e ele saiu lançado da sua casota a latir violentamente e pronto, comecei a berrar e fiz xixi nos calções, sorte que foi a ir buscar os ditos ovos e não a trazê-los, era tragédia grega soltar-me assim e ainda partir meia dúzia de ovos.
Eu cresci, ele também, a minha irmã e a filha da minha vizinha zangaram-se, nunca mais se falaram, e eu, vindo da escola ainda primária, confianças de vizinho, fazia questão de passar pela latada onde estava a casota do Júnior, brincar uns cinco minutos com ele, esfregar-lhe bem aquela pança gorda, coçar-lhe debaixo da mandíbula, e ele regalado, no chão, virado para o céu, com as patas brutas em jeitos simpáticos, se me afastava, levantava-se prontamente, vinha atrás de mim. Pedia-lhe a pata e ele dava a pata. Pedia-lhe a outra pata e ele dava a outra pata. E estávamos nisto tempos infinitos.
Se eu, por fome ou por que fosse, não por lá passasse, ele ladrava violentamente como que reclamando, mas bastava eu exclamar “ó Júnior!” ou dar um assobio longo que ele levantava as orelhas e abanava o rabo.

Deixei de por lá passar, vindo já da instituto, quinto, sexto, sétimo, oitavo e nono ano, ia lá uma e outra vez, festa de aniversário, dar um recado, pedir fermento ou ovos, lá está, chamava-o, brincava com ele, afagava-lhe gentilmente a cabeça, reparava que começava a cara até a murchar-se-lhe, os olhos a ficar vermelhos por fora e negruns por dentro, e ele abanava a cauda, mais peluda que a crina de um cavalo, mais felpuda que a de um coelho, feliz por me ver, lambia-me as mãos, ainda dava a pata - e a outra também, às vezes esquecia-se, mas eu alembrava-o - e logo se punha novamente de barriga para o ar.
A tal minha vizinha e o marido, quando comecei a estudar no liceu, davam-me boleia até à vila, para não ter que ir de autocarro. Ele era a primeira vivalma que eu via todos os dias de manhã, às vezes ainda o sol não havia despertado, fazia frio ou chovia, mas ele vinha sempre a abanar a cauda, só em busca de uma coçadela nas orelhas.


Abateram-no hoje, pouco depois da hora de almoço. Estava velho e doente, estava surdo e muito débil, pejado de moscas e varejeiras a seringarem-lhe a paciência, tão fraco que nem força tinha para se abanar e enxutá-las.
E eu chorei. Não era o meu cão, não era uma pessoa e eu nem sequer gosto de cães, mas uma parte da minha infância morreu com ele. Era o Júnior. E eu chorei.
Ficam as memórias.

publicado por Gualter Ego às 22:43 | link do post | comentar