Vera de Santo António - Parte II

Os laços do sacro matrimónio entre homem e mulher são indissolúveis, indestrutíveis como se de aço fossem, aos olhos do Senhor, e só se quebram em ocasião da morte de uma das partes – haverá vezes em que com a guita sem ponta na mão morrem os dois, sem saber mais do que do seu parceiro devido, fazendo luto até ao derradeiro dia – por ser o Homem um bicho que precisa do calor de outrem a jeitos de não definhar lentamente em prantos, moldando-se tal como se lhe passam os dias, agindo automaticamente até ao leito de morte, sem querer saber de mais nada, com a velinha de pesar de frente da imagem de Nossa Senhora, em memória e promessa e um perpétuo assombro toldado na face, pesada, negra, opaca.

À santidade do matrimónio se vai buscar as bases das relações humanas, pessoa é pessoa, primeiramente, em sua família, até criar a própria sua e passar a ser o homem da casa e a mãe dos filhos – à santidade do matrimónio devem-se muita explicações, as razões de tanta porrada, de tanto aturar os maridos borrachos, de tanto mijo e vómito para aparar aos filhos cheios de mau-olhado, só pode ser, Mãe do Céu nos acuda. Enfim, todas as fatalidades que uma jovem mulher não pode evitar, por se ter amalucado de amores, certa vez, no riacho, Agosto fervilhante, por um sujeito encorpado de sorriso maltês, talo de ervinha avulsa de entre os seixos dos riacho entre os dentes, olhão negro de perdição, tez mulata, de ancestrais duvidosos, talvez mouros, quem sabe, esta coisa dos genes é mesmo assim, e assim bastou para se afastarem as pernas atrás de um chaparro, entrou o amor por ela adentro, abençoou-lhes Deus os dedos anelares e pronto, cá está ela, mulher de um beberrão que lhe prometeu guardá-la e respeitá-la até à morte, mas pelos vistos esvaziou-se-lhe a caridade depois de nascer o primeiro filho.

Mesmo bêbado tem a mão pesada, Miguel de Santo António. Vera de Santo António não chora na presença dos filhos, não quer dar parte fraca, não quer já romper a pureza das suas crianças, antes sorri-lhes entre socos e pontapés, e o homem espuma da boca, atarantado, tropeçando pela casa, está doido de cólera, é o vinho que põe os homens assim, ora deve ser vontade divina, que se da água bebemos e de bichas morremos, só temos mais é que beber o sangue do Filho do Homem, dois patacos o copo, é um roubo, mas eles lá o bebem, de secura não morrem.

Quando se levanta de noite, cuidadosamente entre dois roncos do marido, vai descalça e cheia de cuidado, não vá fazer ruído algum e acordar o legítimo esposo, que tanto trabalho tem e tão cansado a casa chega, merece descansar, coitado, ou não vá tropeçar nos calcanhares de algum dos filhos, que dormem também ali na esteira, para se aquecerem uns aos outros, e esse reclamar que tem fome ou que tem sede e murchar-se o coração à mãe por não ter nada que lhe dar senão côdea e água choca. Levanta-se porque não consegue dormir, e se dorme torna a acordar pouco depois, cheia de suores frios, ofegante, tem medo que o marido acorde nestas ocasiões, também, não vá ele pensar que ela tem outro homem às escondidas e sonha com ele, ali, costas com costas com o marido e assim tão descaradamente tem afrontamentos; ah, mas o marido tem sono pesado, é o que lhe vale.

Abril molhado dava ar de si em chuviscos pertinentes, furtivos, curtos mas de grande levada, bate a chuva na pedra e quase que parece que ela racha com medo, mas a noite estava primaveril, convidativa à observação astronómica, pois que, de pouco em pouco, batia uma ventania nas nuvens, quase que um sopro divino, e elas dissipavam-se e descobria-se a Lua, que iluminava toda a colina, de cima a baixo, tanto coelhos quanto raposos, tanto javalis de focinho rente ao chão, criaturas assim preteridas do Senhor por para ele nunca se dignarem a olhar. Pequenos reflexos cristalinos se tombam das folhas, gotas de chuva que se arrastam, gotículas de orvalhada que ali descansam, o vento é frio e arrepia a espinha.

Vera de Santo António vai e vem, num frenesim por explicar, de braços cruzados defronte do peito, com a Lua a iluminar-lhe a nuca descoberta do cabelo puxado do lado direito do pescoço para pender pelo ombro até aos seios, ofegante, com um olhar neurótico, pregado no chão, titubeando palavras loucas, moribundando. Quem a visse chamar-lhe-ia o demónio feito carne – e não estaria longe da verdade. 

Acordou tremendo, encharcada em suor, arfando que nem um cão, não esperneou nem gritou em êxtase durante o sono, foi o que lhe valeu para não acordar o laborioso marido, coitado, que não está para aturar mulheres cheias do infortúnio danado que é sonhar com o Diabo, esse mesmo o Satanás, o Belzebu, patudo que nem um bode, cornudo talqualmente, vermelhudo de encarnado-sangue, escarlate-guelra à volta dos olhos, fundos e cheios de sombra, dentes podres, pontiagudos, sorriso irónico, malicioso, queixo agudo, garras torcidas, negras, todo nu, porém sem o tradicional tridente, molhando as pontas dos cascos encardidos numa poça profunda cheia de sangue de infiéis.

Desengane-se quem achar que Vera de Santo António está só com a moléstia habitual de quem pariu há pouco tempo, ou com alguma inconsistente alucinação febril, isto de ter visões drásticas do Mal e um já profundo rol de alucinações apocalípticas é trabalhoso e pode vir a custar a vida a uma pobre mulher que apenas na vida errou uma vez e foi em ter nascido.

publicado por Gualter Ego às 03:02 | link do post | comentar