Gatos & Xavier, o Gato Sem Nome

Algo há nos gatos que me compele. São de uma natureza boémia evidente, arrisco-me a dizer clerical (por viverem fartos e bem-dormidos), que me transcende e me maravilha, por viverem tão ignorantemente e altivos, alheios, indiferentes - resignados, talvez. Gosto de gatos porque é fácil eu me ver no seu pêlo fulvo, na atitude crispada de uma ignorante alma despreocupada. Gosto de gatos porque comunicam de uma maneira que nenhum cão é capaz de igualar e não se apegam a nós como esses rafeiros de alçar a pata. Os cães, é simples, acham que nós somos os seus deuses, por lhes darmos comida; os gatos acham-se deuses pela mesma razão. Falta falar das relações sociais: gato é bicho solitário; e quando vai às gatas solta grunhidos e volta arranhado e manco. Um pouco como eu. Sem falar que eu não sou muito bom em conversa de ocasião - mais fácil seria pedirem-me que cantasse um fado - e as relações sociais triviais e por obrigações profissionais ou de interesse, mais os inerentes contactos humanos superficiais e os grunhidos histéricos de uma adolescência em flor, a ferver em clichés e hormonas, se me dão micoses em sítios impróprios de coçar em público. Sinto muitas vezes que sou a minha melhor companhia, e um bicho indiferente que entretém e ronrona será, então, a minha segunda melhor companhia.

 

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Tinha pouco mais de 3 meses, o raio do gato, focinho pontiagudo e olhar de raposo, sempre desconfiado e longínquo. Ainda brincava com os adornos soltos dos tapetes da sala e ainda se me saltava aos calcanhares. Poisava-o no meu colo e em três tempos adormecia, mole e molengão, quase como se morresse. Com a preguiça nunca cheguei a lhe dar um nome, mas sempre soube que se chamava Xavier. Morreu. Como se fosse uma sádica ironia, sucumbiu às custas do seu instinto caçador básico de felino furtivo - regalou-se comendo um rato gordo de sangue escuro que deveria estar envenenado pelos metais pesados encontrados nos comuns raticidas espalhados pela loja onde se guarda o milho e, claro está, morreu também. Foi uma dor d'alma; uma criatura tão ingénua e pura, que nem devia saber que era viva, nem porque dava por si a afincar o dente no roedor caseiro, morrer de morte tão sofrida e imerecida. Prostrou-se ao lado da grande palmeira que gostava se trepar e lá ficou, todo esticadinho. Tinha uns grandes olhos verdes, era como os filmes antigos, salvo seja, era de pêlo monocromáticos, prontos, preto e branco de camuflagem, com o tradicional triângulo de pêlo níveo entre os olhos, de raça assim mesmo. Já roía ossos que nem um podengo e divertia-se a caçar moscas. Quando, de madrugada, eu assaltava a cozinha com fomes tardias, mal ele ouvia o gentil sibilo da faca a sair do do faqueiro ou o som lânguido, aveludado e borbulhante do leite a ser entornado na caneca, empurrava a porta com brutidão e entrava cozinha adentro de focinho e rabo alevantados, este último mais direito que o mastro de um navio, qual Simba dos jardins, e exigia em miares silenciosos, quase de tão sôfregos que eram - que bons actores dramáticos são os gatos - o seu pirezinho de leite da praxer ou, quando a altura se dignava a luxos, um pedaço de toucinho fumado. Fiquei com pena de ter ido tão cedo, o Xavier. [desenho de um gato com a representação onomatopaica do som naturalmente emitido por um gato]

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publicado por Gualter Ego às 02:14 | link do post | comentar