O.M.E.M. (ou Oh Mãe!...)

Útero maldito, que não sou senão este tempo que decorre entre fugir de me encontrar e me encontrar fugindo… de quê mãe?

-José Mário Branco

 

Berra, menino, berra,

Berra mais alto,

Grita a bons pulmões essas lágrimas de petiz.

Tu que estás nesta vida,

Acordar de manhã se saber quem se é,

É como acordar sem chegar adormecer,

Jogar à bola, às escondidas, um, dois, três,

E um dia vais morrer.

 

Vê se te largam desse braço,

A tempo de te agarrares a ti,

E ao que andas cá para fazer.

Sim, que tu és português,

Foi para trabalhar que te pariram,

Não penses, que te escapas,

Só porque ainda tens lágrimas para chorar,

Por não seres velho; vê se aprendes a ler,

Vê se aprendes a escrever,

Nem sabes o que são egrégios, meu animal!

 

Isto é só uma picadela,

Não vais sentir nada,

Édipo e Blimunda,

De mãos dadas,

Um para comer, se comida houver,

E trabalhar, se trabalho for para francês ver,

Outro para cantar e para o resto,

De garganta, rude e lesto,

Há os homens e os mais altos,

Há quem não tenha arma que não cantiga,

E lhe falte o pão de cada dia.

 

Um copinho d'água,

Um comprimido para os nervos,

Outro p'rá tensão, mais um p'rás dores de costas,

Outro para dormir, outro para não ter sono,

Um comprimido p'ró colesterol, outro p'rá alma não doer

E uns tampões nos ouvidos,

Mais uma venda, p'ra não ver demais.

Pouco é aquilo que vês, menos será o que queres ver.

 

Consegues ouvir-me?

E agora?

Não estás farto de ser miserável?

Não estás farto de cantar o esplendor de Portugal,

E depois a bola ir ao poste?

Amanhã diz que chove,

Porra p'ra esta merda, rai's parta o São Pedro!

Amanhã diz que vai fazer sol e vai estar quente,

Porra, que não se pode com tanto calor,

Nunca mais vem a chuva.

Não está frio, mas enfias o barrete,

A carapuça, apertas o cinto,

E levas uma chapada de luva

Branca.

 

Chora, menino, chora

Que a mãe compra.

Chora, menino, chora,

Que o pai dá.

Chora, menino, chora,

Que o sal, o que ainda há,

Está caro, e cada lágrima tempera uma posta de bacalhau.

 

Mar, este mar,

Quanto do teu sal,

São lágrimas...

Merda p'ró romantismo,

Merda p'ró futurismo,

Merda p'ró catecismo!

 

Olha que ele morreu pelos teus pecados,

Olha que ele fez a Luz,

E só por haver Luz há o escuro,

E tu tens medo do escuro, não tens?

Então reza um Padre-Nosso e umas quantas

Avé-Marias, para ver se isso te passa,

O que é que tu tens?

Pessimismo?

Liga a televisão, rapaz!

Here we are, now, entertain us!

We feel stupid and contagious!

Estás de caganeira?

Bebe Coca-Cola, que isso limpa!

Este é o meu sangue, toma e bebe,

Podes beber, a colheita é boa,

1984,

Este é o meu corpo, tomai e comei,

Carne branca, poucas calorias,

Faz bem ao coração, como se isso fosse bom, ter coração.

Mete umas moedas na caixa das esmolas,

Repete comigo:

Mão na testa, mão ao peito,

Agora no ombro esquerdo,

Agora no direito,

Pronto, está feito,

S. Pedro espera por ti,

Ide em paz, que o Senhor vos acompanhe,

Vim de mota e só tenho capacete para mim,

Ai, rapaz, que vais p'ró Inferno.

E então? Melhor assim,

Morrer é fatalidade, é o nosso fado,

E p'ra nascer fui obrigado.

 

Olha que eles estão-te a ver!

Puxa o autoclismo,

Lava as mãos, esfrega bem,

Penteia-me esse cabelo,

Meu hippie de merda,

Hippie, quem te dera a ti sê-lo,

Ter alguma coisa p'ra cantar,

Ter um Vietname e não querer morrer.

Tu não sabes nada, só sabes que vais morrer.

Tu não sabes nada, só sabes chorar.

 

Chora, meu menino, chora,

Há-de chegar a tua hora,

Olha que não demora,

São oito da noite, menos uma nos Açores,

E tu aqui, a escrever isto, feito Mário Branco,

A achar que alguém te vai ler,

Vai mas é estudar, vai mas é aprender,

Já que agora tudo o que é acima de cão sabe ler,

Não sabe é ler bem,

Aqui mete-se uma vírgula, meu estúpido.

não é um ponto final.

Ali era maiúscula!

Ao menos sabes por os acentos,

Aquilo ali era esdrúxula,

Às armas e aos anões assim chamados,

Porra, que és burro,

E depois a culpa é do zarolho,

Qualquer dia implicas com o bêbado,

Chama-lo de filho da puta esquizofrénico,

Tu é que és o cego afónico,

Tu é que és o cidadão antagónico,

Anti-germes, anti-ratos, anti-ratas,

Não atas, não matas, nem desatas,

Por não saberes atar nem os atacadores dos sapatos,

Nem dar nós de enforque,

Nem afiar as lâminas ou as palavras.

Dá-lhe no verso, dá-lhe no roque,

Dá-lhe um pedreiro,

Dá-lhe um repositor de stock.

Truz,

Truz,

Quem é?

É a tua cruz.

 

Andas por aí à mete-nojo,

Penteia-te, já te disse,

Vê se vestes uma camisa lavada,

Umas calças engomadas.

Não foste à tropa?

Só te tinha feito bem,

Ao menos sabias engraxar sapatos,

E rabos.

E ganhavas caparro

E força de braços.

Chora, meu menino... porra,

Já chega de choro e pieguice,

És um homem, por amor de Deus,

Estás feito um homem, por amor de Deus!,

E eles só querem que tu sejas um homem.

E não é que seja pedir muito.

Nascer, pagar imposto;

Comer, pagar imposto;

Procriar, pagar imposto;

Morrer, pagar ao cangalheiro,

Mesmo depois de morto.

Isto é ser homem.

E o cangalheiro, amável figura da mitologia lusitana,

Senhor astuto, espigado e absorto,

Quem o enterra a ele?

 

Só a carne que se estraga,

Alimentava uma família inteira,

Pai de família e extremoso marido,

Morreu de coração,

Não há-de ter chagas que façam mal aos intestinos,

Não morreu de doenças, nem de febres, foram destinos,

É como se fosse o corpo de Cristo,

Num sentido mais literal, vá,

E somos todos irmãos dele.

 

Tu és o anti-cristo,

Tu és um filho da puta de um anarquista,

Tu és a caneta que teima em não querer escrever,

Tu és o relógio que não sai do lugar,

Tu és Joana d'Arc, tu estás a arder,

É fogo sagrado,

É o Espírito Santo,

Entrou-lhe p'lo cu,

Saiu-lhe p'la boca,

Viva el-Rei.

 

O Johnny Bigode morreu,

O Saramago foi cremado,

Jesus foi crucificado,

E nós aqui, a viver,

Feitos parvos,

A transformar oxigénio em dióxido de carbono,

De um lado para o outro,

Pobres de alma, pobres de roupa, pobres de tacho,

Falsos burgueses, falsos portugueses,

Falsos pais, falsos filhos, c'est vrai?

Então, é ou não é?

 

Isto é gente de boas carnaduras,

Isto é gente que dorme em qualquer chão,

Isto é gente que bebe vinho do gargalo,

Que bebe martini branco em copo de plástico,

Whisky on the rocks, nevermind the bollocks,

Isto é gente que acorda mais cedo que o ardina,

Que bebe a bica e lê o jornal,

Chama nomes aos políticos e aos árbitros,

Vende o corpo e a alma,

A avó, se for preciso,

Mas é gente boa, lá isso é,

Língua afiada,

Obrigado, de nada,

Só lhes falta a maldade,

Uma pitada de escárnio e ruindade.

 

Cale-se o Grego e o Troiano,

Não andei na escola, não sei quem é Alexandre,

Nem Trajano,

Deixa falar quem já bebeu demais,

Deixa chorar a guitarra,

O xaile é preto, é o luto do fadista,

Canta o infame peito lusitano,

E o peito diz Coragem!.

 

Dá-lhe com sardinha no pão,

Dá-lhe no Sant'António e no S. João,

Dá cá um balão,

Deixa o puto brincar.

 

Dá-lhe arroz e pão,

Dá-lhe a aguardente nossa de cada dia,

Dá-lhe uma cama,

Que ele lá encontre quem o ama,

Alma lusitana precisa dos ritos da carne,

De se dar ao canto da sereia,

De se apaixonar pelos olhos de Medusa,

De ter a bela e querer o monstro.

 

Chora, menino, chora,

Que quem chora, seus males espanta,

Ou é quem canta?

Seja, que chorar também é cantar,

Chorar é rimar,

Se há coisas que português sabe fazer

É chorar e rimar.

O luto deixa p'ra depois,

Vou morto e deitado,

Dali já não me levanto,

E nada levo comigo,

Português suave, amigo,

Sem filtro,

É vício e mata,

Não mata mais que o amor,

E o Homem sempre o quis,

Cuidado, que o fundo do copo não te assombre,

Espera, não vás,

Bebe mais um c'a gente,

Herege, vegetariano,

Budista, cigano, descrente!

Maricas, sacristão, calceteiro,

Andamos todos a levar no cagueiro,

Pá!

Calma, respira fundo,

Não chores, cachopo, olha que ela depois não gosta de ti.

Ah, bom, seca-me essas lágrimas,

És um menino bonito, assim.

 

Somos todos uns líricos analfabetos.

Somos todos marinheiros,

Que só sabem rezar quando vão p'ró mar,

Santa Bárbara, está a trovejar,

Acendo-te uma vela no altar,

Não tenhas medo de morrer,

Que não chegas a velho,

Hás-de acordar um escaravelho,

Barata, larva, traça e dia de Natal.

Levantai, hoje, de novo,

O esplendor de Portugal!

Mas hoje joga o Benfica,

Um quarto p'rás nove, antes do telejornal.

publicado por Gualter Ego às 19:17 | link do post | comentar