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31/7/2014

O aperceber-me extático do escaravelho na parede, do morcego que voa em roda do candeeiro alto, do gato meigo e com fome que não me presta atenção, da existência enigmática, independente de mim, de tudo isto, e também da mulher-símbolo que chora ao meu lado lágrimas de mim.
            Somos o único organismo que escolhe e a única escolha sensata, digna do nosso cume na hierarquia biológica, seria parar de escolher - ter todas as condições e nunca usar delas, todas as noções e jamais as pôr em prática, gozando o orgasmo de saber que poderíamos, numa febre de hipótese.
            Queimar ao nascer do sol a obra que se produziu durante a noite em horas de suor e dentes cerrados. Deixarmo-nos adormecer nas ideias de versos e frases perfeitas na total certeza de que ao acordar não nos recordaremos delas. Aplicar isto à vida - ignorá-la como a um mendigo, ou remediá-la como um analgésico remedeia. Saber que poderia, se quisesse, ser como a preguiça, o animal, na parábola para crianças, agindo não por preguiça, mas por indiferença, suicidando-me de sede, num esforço menor. A minha alma é medíocre, mas não se fez: deram-ma assim.

Até este meu ermitério é só uma ínfima parte disso; nem sequer deveria pensá-lo com esse nome. É uma pausa muito curta, cada ano mais, porque isso o meu ânimo tolera, todos estes sabores de coisas sem alguma vez chegar a tomar alguma, só beber da vida com a ponta amedrontada dos lábios, com a um café muito quente. Não é método, é ter sido uma criança a quem permitiram ficar o tempo todo em casa. Tentar mudá-lo é inútil e a glória é a verdade dos brutos. Não, não faço do que escrevo glória minha. Será, somente, o relato demasiado detalhado de todas as maneiras que usei para abdicar de todas as glórias.

O cansaço que tenho faz franzir a expressão e adquirir feições rudes. É cansaço real e temperado pelo desânimo de não conseguir preencher mais páginas deste caderno. Fiz, estes dias, uma amizade - que ainda pereço ter (ou cultivar) esse trato amigável de me ser muito fácil a introdução social,  com uma jovem estudante de economia, italiana, falante de português por ter passado tempo em Coimbra, num sotaque pronto e irremediável, já com a sua quantidade certa de histórias vividas. Ora, o ofício dela, parece-me, é exactamente o de viver na vida. E isso ela fá-lo irrepreensivelmente e com desenvoltura. Quero com estas inutilidades nem levemente biográficas dizer que ela enche páginas e páginas de caderno no ofício dela de activamente estar na vida. Invejo essa destreza, porque sou medíocre naquilo para que nasci e não poderei sequer tentar a vida como ela a constrói. Resta-me vê-la fazê-lo, e até em mim, e eu deixar-me conduzir, como um pequeno cordeiro no pasto da vida. Ah, essas pessoas que vivem; que conseguem tirar mais dos infortúnios que relatá-los. Que têm, verdadeiramente, um estofo prático. Invejo-os, dá-me prazer sentir que entrarem-me na vida é a caridade de um deus, que não podendo dar o fogo, abre pequenas execpções.

Tenho a vida como tenho a coluna vertebral: funcional mas dorida. Tudo se resolve com uma noite de sono, tudo se desfaz num dia de esforço. Foi a confimação da minha rescisão com uma vida prática, as circunstâncias do corpo a mimetizarem a incapacidade da alma. Ah, que porra, finalmente alguma coerência.

Ouvi uma voz que cantava um salmo ortodoxo e apaixonei-me. Não olhei para ver de quem era o corpo que usava dessa voz de mulher, não procurei saber da cor dos olhos, do cabelo, da cor de nada. Procurei tornar aquela a voz mesma que pensa por mim por detrás dos meus olhos, mas ela fugiu-se-me. Ficou depois um silêncio de tosses e gestos e folhas de papel, a crispação dos lábios e dos suspiros. Foi-se a voz e a memória dela e o dia, também.

O olhar vidrado e pálido com que olho o chão ao caminhar é um pleonasmo da minha alma, como a miopia é uma antítese irónica do corpo para com a alma.

Emburreci e os dias parece-me demasiado curtos para o que não sei, demasiado longos para o que não faço.

[Um gafanhoto poisou-me no braço. Reparo nele que, para fora de mim, as coisas se mexem, interagem sem qualquer necessidade das minhas sensações as reconhecerem. O gafanhoto saltoum, esvoaçou de mim para a grama. Reparo que a mais vil das existências é uma que não tem escolha senão perturbar outras.]

Quero viver sozinho num estado ébrio e sem desejos.

[Enumero coisas que quero como uma criança pelo Natal.]

Acabo todas as noites por me revoltar contra mim. Com sono são dois que escrevem, o idealista e o pessimista - e o pessimismo do idealista, junto com o idealismo do pessimista, porque nada em mim se consegue medir ao absoluto, impede qualquer um de ganhar vantagem sobre o outro. E é nestas horas que me deixo ir dormir, para me poupar a um desfecho que não posso prever e também por cansaço. Sobretudo isso, cansaço. Tanta gente. Há tanta gente e é a mim que não me suporto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1/8/2014

Troquei dois discretos olhares com uma mulher, entremeei um sorriso e ela também, de duas vezes distintas mas consecutivas que nos cruzámos. Não sei que língua falaria, nem a que nome responderia, mas no que imagino ela fala num dialecto só meu e dela, onde ninguém responde a nomes. Essa dupla troca de reconhecimento, com mútuo distúrbio da musculatura facial, valeu-me mais que muitos anos de amizade fortuita partilhada com muito boa gente. É nestas mínimas interacções que sinto, verdadeiramente, e não sabendo mais de física que a certeza de que tudo acabará por se quedar no chão, a necessidade obsessiva que o universo tem de causas e efeitos. Mas os átomos de mim não tocaram nos dela e o efeito todo, sem causa física, foi maior que aquele de um soco. Senti-me egoística e carnalmente reconhecido.
            Engano-me pensando que quem me nota ao passar o faz para lá das minhas aparências, que por si são medíocres, como eu tento adivinhar o corpo pela roupa que o veste. Vivo, enfim, para ser reconhecido só por quem passa, a nunca ser descoberto a fundo e a não me descobrir com medo do espanto e do escândalo perante o âmago infernal.
            Troquei olhares com ela e imaginei-nos a fazer amor. Aí morra toda a filosofia e se põe à prova o estofo das palavras que largo. Foi a melhor noite da minha vida e imaginei-a só, mas juro que lhe sinto o sabor na boca.
Todas as minhas sensações são emprestadas - devolvo-as, nestas páginas, como quem devolve enrugado e dobrado nos cantos um livro que lhe foi confiado intacto.

O riacho alimentado pela fonte de St. Étienne está seco, apesar de ter chovido forte a semana inteira. Não me atrevo à analogia descarada, porque o riacho não quer saber de mim.

[Pesa-me, só, não poder molhar os pés, como quem os tira da vida, num ânimo de drogas e outras distracções.]

O calor do sol é impotente perante a forte orvalhada que tomou as ervas espessas. Descalço-me e sinto até aos tornozelos a água fria que a noite deixou, caminho na grama como quem acaricia o pêlo de um grande animal. Tropecei eu numas urtigas como na aparição súbita de o corpo ainda sentir para lá da minha dormência de espírito.

[Cocei-me, como não posso coçar a alma.]

Atrevo-me: estou seco como este riacho apesar de me ter chovido forte a semana inteira. Como me enervam todas as metáforas toscas que me servem como um fato à medida. Que rísivel me sinto de todos estes paralelos.

[E nem posso molhar os pés na vida a sério.]

Releio agora coisas que escrevi faz um ano e noto que sentia já franjas daquilo que hoje me cobre todo. Fico, porém, com os pés de fora, ao frio. Se puxo a manta das verdades impostas com os pés, descobre-se-me o nariz. E estou sempre nesta indecisão que é escolher onde ter frio.
            Na altura em que escrevi o que releio não me recordo de sentir indícios de que tal fosse acontecer. Lembro de, soberbamente, querer que acontecesse, com muito ânimo. Como quem se apressa a abordar o barco para o exílio. Espanta-me. Não me é hábito tomar a iniciativa da vida. Qualquer que seja. Sucede, reparo, em situações muito específicas, decidir escolher um trilho que sei incerto e com resultados que poderão, na sua maioria, ser desfavoráveis. Não será por aventura, sadismo, nem penitência. É por tédio. É um contra-tédio a que me obrigado - ou a que sou conduzido pelas forças inconscientes dos fantasmas que me operam - fruto de um animismo primordial, para não vegetar. Complicar a vida para lá do resolvível, só porque tenho sono dela. Torná-la, vá lá, minimamente interessante, ainda que não interesse a ninguém.

Aperceber-me, numa cólica fria, da vã glória opiácea da felicidade a meio de uma gargalhada histérica. Uma luz baça que se acende num arrepio quente de remorso, como se a tristeza, a quem me houvera prometido eterno esposo, me flagrasse na cama com a felicidade. O sexo, como resposta à exaustão da tristeza, é menos vergonhoso, em dependência directa, que a felicidade. Mas reduz-nos às ressacas mais irrisórias. Sinto mais necessidade física de contacto que de água. Náuseas maior ao olhar um corpo fortuitamente que ao recordar-me da inutilidade da vida. A busca pelo sexo e pela felicidade é uma estaca enterrada, onde está atada uma trela que nos prende de esgana e nos impede de pastar onde está mais verde.
            Um amigo confessava-me que a melancolia sentida num momento de meditação, porque honesta e pura, disse-o, havia sido o sentimento mais feliz da sua vida; que tudo parecia simplificado como uma fracção que se reduz, palavras dele, matemático, inerte como nós desatados, palavras minhas, imbecil, e que se o tempo houvesse parado naquele preciso momento, ele poderia ser, na sua tristeza, porque honesta e esclarecida, feliz.
            (A tristeza é a compreensão, porque o entender entristece. Ciclo espiral. Ah, é fácil e inútil como a vida o elogio da tristeza, o desdém intacto por todos os quantos conseguem nutrir-se da mais reles das felicidades, que não passa de inveja, tóxica inveja de não ser simples, de não ter já opção à tristeza e criar nela uma admiração doente que nos permita o gozar algum prazer [sempre o prazer] no senti-la. Ao tentar explicar-me numa conversa, ainda com esse amigo referido, italiano, calhou-se traduzir-se “elogio da loucura” para a língua dele, onde loucura é folia. Folia, claro, na nossa língua é pândega. Influência talvez medieval do cristianismo sisudo, onde qualquer indício de festa e entusiasmo seriam sinais de loucura. Mas folly, na língua inglesa, é um tolo, the fool, o mesmo de Shakespeare e Gil Vicente, aqueles cuja sabedoria reside em a terem sem a reconhecerem. A mais sã das loucuras é, portanto, a mais honesta das felicidades - a que não se conhece. A etimologia não engana. Resta saber: haverá em mim algo que eu não conheça? Provavelmente, sim. Mas é, obviamente, e será, fatalmente, indizível, enquanto for. Quando chegar, chegará num júbilo de iluminação, mas eu entristecerei por manchá-lo com o reconhecê-lo, como um jogo que só se poderá ganhar se não o jogarmos, sendo de o jogar exactamente onde nos vem o ânimo para a vida. Até lá, atinjo uma felicidade medíocre por meio de uma tristeza que aprendi a amar como um cativo fugitivo sente falta da vista para o mar que tinha da sua cela no exílio - um método que a vida me obrigou, indevolvível, e que recebi, incrédulo, como quem recebe uma piada má, depois de uma prometedora narrativa.)
            Depois

Percebi, há pouco, alegre e entusiasmado, que me consigo explicar em conversa, se nessa direcção, com paciência, dirigir o meu esforço. Senti, todavia, que me prostituía, e também o pesado desinteresse carregado por cada palavra.

Não me mato porque, como tudo se goza posteriormente, não poderei gozar da minha morte. É aí que Epicuro, não errando, acerta ao lado, quando justifica que não se deve temer a morte, por ela significar o fim de todas as sensações más. Não poderei gozar o fim de todas as sensações más. A vida é um filme que peca por ter um final tão fraco. A morte é medíocre, comparada com a vida. Não me mato.

Há dias em que acordo e acredito em deus. Saio do fundo dos sonhos com resoluções felizes para a vida, um idealismo epicurista que à hora de almoço já desdenho com uma gargalhada de vexame próprio. Ao amanhecer é mais fácil suportar o mundo; compartimentar a vida em horas felizes é algo possível de manhã. Cada noite de sono é como dois passos em frente e um para trás. Sim. Como uma pequena morte, acordar reencarnado e ir reaprendendo, ao longo da jorna, as ideias inatas; efémeros somos nós, que morremos todas as noites, e não as pequenas libélulas, que vivem a eternidade entre o alvor e o crepúsculo.

Esta gente fala como quem cospe. Sinto os seus risos animais como um insulto. O meu humanismo é abstracto, ideal - talvez ingénuo, talvez fruto só de uma empatia inata indelével - porque o que eu quero mais é que vá tudo para a puta que os pariu.

            Cada vez mais acho que a existência dos outros é em detrimento da minha. Só peço da vida que não me incomodem. É óbvio que me sinto o centro de tudo, é óbvio que me sou ensimesmado, que o mundo gira em minha volta. Mas como é óbvio, óbvio de me fazer usar pontos de exclamação! É-o, tão certamente, se não posso sair de mim, caramba.
            E já nem compaixão sinto, nem curiosidade das vossas existências todas, porque compaixão têm-na os santos e para tédio existencial basta-me o meu. Sou intolerante da disciplina anárquica da existência avulsa de outros sentires no mundo que não se ocupem de sentir; tenho asco, verdadeiramente.

            A consciência num corpo, como um messias nascer num curral, sem ser símbolo tosco de humildade, mas da inadequação da realidade e dos erros genitivos da criação. O desperdício da consciência num corpo, tão bruto, tão finito, como a única coisa que, não fazendo, me quer fazer acreditar na vida após a morte, para que se possa fazer esse arranjo justo.

            Recordo com alguma nostalgia carente que comecei muito cedo a ter namoradas. Ainda que soubesse pouco de tudo aos oito anos, escrevia já pequenos bilhetes, não sei com que impulso, em que descrevia, recontam-me, coisas de amor com palavras difíceis. Não me lembro de as sentir, mas lembro-me de as escrever. Quero com isto chegar à conclusão de que sempre, desde que me posso recordar, me senti agir, melhor ou pior, sinceramente ou não, em função de uma leve sensação de bebedeira trazida pelo sexo oposto. Que o vício a que cedo são as mulheres e que, adianto é a mulher, apenas na condição de ser a ela que me sinto atraído, podendo ser o homem, podendo ser ambos, falo, enfim, da atracção encarnada, é a mulher, retomo, que me impede de me considerar superior eu próprio, por incapaz de quebrar essa dependência. Não culpo - isso é próprio dos gregos clássicos e dos idiotas contemporâneos - a mulher, em sim, por nada disto, não fazendo isso sentido. A culpa é só minha e ter nascido assim, com o fervor da procriação poética e das curvas de um corpo que se ofereça. Não vejo, porém, como crescer para lá da necessidade de mulher. Poderá, muito bem, chegar a mulher que me faça ver que o prazer carnal não tem, necessariamente, que me distrair do que seja.
            Tudo hipóteses, como todas as conclusões a que chego. E nesta equação não coloquei sentir-me, sem conotação sexual, só metade de algo - também muito próprio dos gregos. A solução parece-me que seria a assexualidade das duas partes - problemas da arquitectura fundamental do mundo - duas existências que se unissem em acordo o melhor possível (sem impulsos carnais, nem os mínimos), que duas cabeças, dizem, pensam melhor que uma, e pensar em muito se parece, se bem feito, assim a dois, com foder.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

2/8/2014

O cigarro que fumo de vaidade, o álcool em excesso, o pão que molho na fritura ou no azeite, todas essas indisciplinas da saúde do corpo, liricamente chamo-as de suicídios demorados, com vergonha de admitir que realmente me dão prazer e que as pratico com o fim último, não de morrer de uma morte evitável de incapacidade orgânica, mas de me sentir bem. Guardo apenas a santidade do café, que tomo amargo - memento mori, memento saeviti.

Sou um espírito incapaz com muito vocabulário e entendimento para o usar. Sem isso, passaria na vida tímido, inconsequente, trabalhando inutilmente, procriando, contribuindo e enlutando por obrigação. As minhas palavras são a minha redenção, a tábua de um náufrafo. Por isso o meu discurso é pensado, num banho-maria de sentimentos, e uma folha mínima me pode demorar uma hora, na escolha aparentemente irrelevante da melhor sintaxe.
Poderá ser a manifestação do meu carácter fingidor, mas não considero que forje o que relato da alma se demoro a escrevê-lo. É que trato com reverência as palavras, a única coisa por que dou graças; elas me assistirem; e sinto o dever de ter as mãos de um cirurgião ao escrever. Enfim, tolices. Fingimentos por sobre fingimentos. Perco o tempo com justificações vãs de actos desonestos porque analisados. Faço tudo por caprichos de imortalidade, por maior que seja a noção que tenha da morte.

Olhar para a vida e prever a morte, como quem olha o céu e prevê chuva - não a ignorando nem rezando pelo sol que virá depois, mas preparando, com veemência, guarda-chuva e gabardina.

Daquilo que sei e reconheço é o que mais estranho, e por isso me custa escrever, a súbita aparição da outra pessoa a meio de uma conversa. A ideia impessoal que ela se torna em mim, as palavras que oiço e ela diz e o não serem minhas, mas falarem de mim; reconhecer, nesse aperceber-me do ser de outrém, que também sou um outro (je est un autre? não tanto.), que há existências a quem me torno enigmaticamente invasivo quando com elas interajo. Que o corpo é, sonhadoramente literal, a jaula de uma besta faminta que nunca definha se mal alimentada.
            Estas ideias chegam-me aos solavancos, porque sinto até o anonimato súbito de quem me teve longotempo. Sinto-me mais inútil ao não conseguir decifrar isto tudo, que ao não conseguir fritar um ovo na vida a sério. Vou tentando, com palavras custosas. Estranho, nestas horas, haver outros que não sou eu e os meus olhos, e a sua necessidade. Haverá quem o tenha descrito, e melhor, se superiormente tenha sido sentido. A mim resta-me ir sentindo-o, um súbito limpar de olhos, como um halo que delimita em torno do semblante oposto. Pergunto-me se será mútuo.
            Conceber uma existência alheia é diferente de conceber todas: não me causa um sobressalto na respiração como a segunda, causa-me, sim, um expandir peitoral de calor infantil. Tramado é escrevê-lo, porque está para lá da praticalidade do sexo; é algo que sucede as palavras, que as persegue, uma coisa inenarrável que não deve ser coisa e a melhor palavra que encontro é aparição.
            "Apareceste-me" na vez de "amo-te".

(Quase que quero que sejas infeliz, por já não ser eu quem te faz sorrir. Não suporto este egoísmo indomável e sinto-me só, mortificado.)

Perguntam-me quando escreverei um livro. A reposta é ridícula de tão simples: quando estiver preparado. A preparação, por sua vez, não é tão simples quanto a resposta.
            Terei de dirigir o que escrevo como meu para a escrita de romance, criar personagens dignas com pouco de mim para não boicotar a diversidade e acontecimentos fulcrais que marquem a cadência da narrativa; terei que colocar no papel as tribulações que não conheço e as singularidades das coisas que jamais nomeei. Todavia, isto são apenas pormenores técnicos, facilmente contornáveis, se não resolvíveis, com prática e leitura. Pior será escrever um livro sob o ideal épico e neurasténico em que concebo a produção literária com estatura de romance, numa mania teimosa: sem pausas. A verdadeira obra é feita sem pausas. Se passar um dia sem acrescentar algo ao que produzo, deixo acrescentar algo à alma e a obra sairá desigual, maior no seu fim que no seu início. Escreverei um livro quando estiver preparado (para produzir, numa febre, sem comer nem beber nem dormir, de uma ponta à outra, a obra, como um trabalho de parto).

Em mim, queixar-me a alguém, apontá-lo na sua conduta por, a exemplo, passar à frente numa fila, teria o mesmo efeito renovador em mim creio que aquele que acredito que tenha sentido Alexandre quando venceu em Gaugamela. Não fui feito para as coisas grandes, mas elas não deixam de o ser em proporção.
            Saber desatar-me da minha gaguez mental seria a minha glória maior. Mas para quê? Sempre que penso fazê-lo cresce um tédio húmido por mim todo. Para quê tentar eu estabelecer alguma justiça mínima? E para quê querer a glória?
            Só tu, agora, mulher, te queixas das minhas incapacidades. Sinto-o, toscamente, como um ataque à masculinidade minha que achava domada e quase posta de parte. Num alarme de me achares desadequado, tento pelo máximo todos os esforços que o meu temperamento abúlico de fatalista incorrigível sempre abomina. Sempre soube - quero crer que sempre soube - que acabaria assim: em função de uma mulher (primeira das glórias, última, também, se formos sensatos), como nos livros dos românticos que detesto e que teimas em comparar a mim, só para me veres chateado - ah, o fatalismo. Não te aflijas, porém. Sabe apenas, mulher, que nunca agi tão cegamente, tão para lá de mim, como quando decidi que faria o que fosse para não ter que abdicar de ti. Ainda não sei que forças me socorreram nessa hora e ainda hoje recupero desse esforço. Tudo o que espero é a consideração justa como pagamento. Pelo menos que me poupes a qualquer desnecessária humilhação. Tens nas tuas escolhas a maneira definitiva de como abordarei a vida em diante. Se porventura te fores precocemente, saberei que tinha razão, porque espero sempre o pior e não por não crer em ti, e que todo o esforço é vão. Se não, deixar-me-ei enganar apaixonadamente por mais um pouco, até te ires, numa hora lá longe o suficiente de hoje para eu achar que é o produto bom natural das coisas. Resigno-me. Não há proveito significativo em estar comigo, portanto creio verdadeiramente que sintas amor. És demasiada esmola para o mendigo da vida que sou. Perdoa-me, portanto, desconfiar acima de tudo. Não é por mal, é pura incredulidade dormente. E se eu te admiro, então estou cativo de ti; tens-me de verdade. Estou à mercê. Dou-me, também, e tu que me carregues, ajuda-me, que eu já me peso demasiado.

Se retornar a ti, Taizé, será sozinho, para me poupar a sentir-me só. Se retornar a ti, Taizé, sei que terei discretamente de passar por ti, mudo e quedo; fazer de ti o exílio possível se não houver outro melhor. Tanta gente, tanto bulício. Quero voltar a casa.

A capela, agora de noite, quase não tem luz. Alguma dela esfuma-se pelo vitrais, altos e verticais, muito fundos parede dentro, deixando que a lua tímida em crescendo, escondida por detrás de um véu fino de nuvens, entre sem cerimónia na capela e lhe ilumine vagamente o tecto nu e rugoso num azul de sombra. O sacrário singelo quase não se vê, na penumbra de uma escavação em concha. Em frente, um altar, que sem o pano e as duas velas curtas seria só mesa. O ambão, ao lado, pouco mais servirá que para poisar as mãos. Dois grandes castiçais em ferro trabalhado, pregados à parede, seguram duas altas velas por queimar. O ocaso cai e, com ele, a luz que chega da pequena porta aberta vai tremendo como um lume que se consome. De cada lado, em frente, uma figura. À esquerda, na parede, uma Virgem de Vladimir e três velas e alguém que reza sob elas. É o ponto mais brilhante deste cenário. Os dedos da devota vão saltando o rosário, os seus lábios sussurram surdas ave-marias. À direita, a poucos palmos do chão, um Cristo em estanho no martírio da cruz é iluminado por uma lâmpada amarela que o projecta numa sombra tenebrosa.
            A capela alonga-se por três arcos românicos e finda aqui, onde me sento. Acrescentam-se as duas figuras que rezam de joelho. À mulher, de costas direitas, percebo-lhe a magreza e as linhas frágeis da face. O homem, de bruços, inspira decididamente e as vértebras abrem-se-lhe como um leque. Neste acto final, levanta-se, guarda a Bíblia encapada a pele, coloca o relógio no pulso, calça as sandálias e veste o casaco. Ao aproximar-se de mim, saindo, noto-lhe o invulgar cabelo fulvo, a barba idem, e os óculos redondos de aros claros. Sai em silêncio. Toda esta cena, aliás, se passou em silêncio, tirando o estalar crocante dos ossos do ruivo que orava.
            Deixei-me estar por mais um pouco. Ninguém se havia movido. Apenas o rosário ia já adiantado. A tranquilidade verdadeira de um silêncio que não se faz símbolo de nada mais. A sua existência enquanto remedeio do burburinho da criação, nirvana dos pobres atentos. Deixo a capela para os que crêem, cheio de abandono por não ter em quem confiar  a minha alma.

Míope da vida, alheio-me como quem nega o dia ao não abrir as portadas das janelas. Anulo-me no escuro do meu quarto com medo selvagem de magoar a vista na claridade com que a verdade só pode chegar. Quando lhe vi indícios deu-me só para chorar e nos meus olhos turvos tive saudades do sol.
            Não enxergo qualquer luz no ponto de fuga a que me levam todos os traços geométricos da vida. Não vejo, honestamente, futuro para mim, da maneira que vivo. Ironia violenta, o contexto inexplicável em que esta constatação fira me chega. Aos outros não parece faltar luz nem pavio. Vejo a minha vida em relâmpagos, fotogramas pálidos de movimentos sem relação necessária. Onde peço o reembolso desta farsa má?

Tenho medo de, ao cultivar a indiferença das coisas e dos sentires menores, desfaça, ao ignorá-los, os pilares que sustentam as coisas e os sentires maiores. Tenho medo de vulgarizar o meu discurso, com palavreado que apelidarão de pedântico, desfazendo, ao ignorá-la, a verdadeira essência do que sinto.
            Tenho medo, enfim, de ficar sozinho. Mas até esse pequeno trágico desterro me anima, se for para sentir coisas maiores e me proporcionar material para discurso pedante. Fazer da vida toda matéria bruta; sociopata humanista.

Dei-me a um pôr-do-sol cinzento alaranjado, que me tomou nas colinas de nuvens que iluminava e fez o meu peito fraco rebentar em fagulhas de pólvora surda. Senti a pequenez de tudo na arte efémera desta ocaso oportuno. Senti o fim da minha estadia aqui e o retorno a casa. Sou o sítio em que estou e serei outro, não outro transformado, mas outro retomado, ao chegar a casa e abraçar a minha mãe. Não mais o orvalho de cá, não mais os sinos, não mais as cadências dos cânticos ortodoxos que gelam a alma. Vou daqui sempre estrangeiro para poder voltar e saber-lhe o valor. Repito-o, há sítios a que se pode apenas voltar. Criei imensos, mas este é o único, ex nihilo, fora de mim.
            Agrada-me a ideia de independência de mim, de nada terminar ao terminar-me eu aqui. Mas há um eu que cá fica e que só eu poderei vir cá buscar.
In memoriam ou algo que o valha, deixo estas palavras sentimentais à revelia do meu temperamento céptico. Há que saber ser supersticioso com a vida, porque quase sei de ler constelações.

Prevejo a solidão cancerígena até com algum entusiasmo. Algo de novo, enfim, algo de novo. (Espanto-me pela rapidez com que me desaparece o sentimento certo que me faz chorar. Se quero sentir a catarse do choro por um pouco mais, tenho que fazer um esforço de memória - onanismo sentimental.)


Parte da minha indiferença, da minha mecânica frieza, vem da crença amoral de que os fins justificam os meios, não só nas acções directas e imediatas, mas também na minha vida cronologicamente disposta. É esta a minha fé.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

3/8/2014

Caiu uma tempestade tenebrosa, de relâmpagos largos de explosões de magnésio fotográfico, ventania desembraiada, chuva grossa e diagonal, assim que entrámos no carro para partir. Fica só este apontamento do dia de hoje, em jeito de fim, porque o é realmente.
Não sei que tempo faz em Portugal, nem que tempo fará em mim. Aqui chove, à despedida - como de outro jeito não poderia ser.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

João Biscaia
27 de Julho - 3 de Agosto
Taizé, França

publicado por Gualter Ego às 00:24 | link do post | comentar