Quinta-feira, 27.12.12

Sacro Prurido

A sacristia toda de chão em pedra conserva o frio dos meses de invernia para manter fresco o baixo clero durantes estes de estio. A única janela fica à direita do altar e não tem mais que cinco palmos de altura e metade disso em largura, com um par de ferros delgados em cruz a fazer de grade, o dintel feito de um troço de madeira velha e carunchada e as portadas abertas de par em par a deixar entrar um leve feiche de luz que chega para aquecer os pés e vê dançar o resquícios de poalha que flutam no ar sagrado da casa do senhor.
No altar da sacristia está um santo António sem halo segurando um menino Jesus sem cabeça; do lado contrário uma rainha santa Isabel, a da lenda das rosas, com as ditas a cair-se-lhe aos pés; a ladear a santa rainha de Portugal nascida em Aragão um são Sebastião, todo em ânimos de mártir espetado de flechas sem engaste e lascado do tempo, amarrado a um tronco avulso por homens de Diocleciano e ali mesmo canonizado só pela força da sua crença e da letalidade das setas.
Ao meio está o filho do senhor vosso deus pregado a duas tábuas de madeira intrepostas em perpendicularidade pela mãos e pelos pés com cavilhas de nove polegadas cada, um trapo pertinente a tapar as vergonhas, a coroa de espinhos investida pelos legionários pagãos assassinos que cuspiram e zombaram com o rei nazareno de todos os judeus, sangue a pingar e escorrer, lanhos profundos nos flancos do tronco, tudo isto em escala de um por cinco, madeira envernizada, cristo em ferro banhado numa imitação de oiro e um escabelo removível para o uso, embora raro, mais ergonómico em romarias e afins procissões.
À frente, porém de costas, desta sacra mise-en-scène, está o senhor prior pároco e guardião destas divinas paredes vai para cima de quarenta e dois anos, ordenado padre e investido com o sagrado paramento pouco depois de fazer os vinte e cinco, orgulhando-se de ter oficiado perto de três mil missas até à data, o dobro numerário de baptizados em conflito com o total cardinal de funerais e mais um tanto sem número de casamentos dos quais não há notícias de divórcios ou desacatos. Bodas de prata para cima das duas dúzias, bodas de ouro nem tantas, mas isso é porque só a morte separa o que deus nosso senhor teve o prazer de unir em segunda mão pela primeira mão do padre Antonino que aqui vemos prostrado relaxadamente na sua cadeira de madeira trabalhada à mão, forrada em tecido bordado artesanalmente e com tachas de cobre a segurar a dita.
A secretária da sacristia segura-se em quatro pernas curvas tão trabalhadas quanto as costas da cadeira mencionada anteriormente, a imitar folhagens e rebentos frescos de plantas de época, e sustenta um cesto de belhoses de abóbora poisados num paninho de cozinha trazidos pela dona Júlia, beata fiel aos desígnios do senhor e paladina do bom sustento nutricional do senhor prior - o cesto vai já a metade e ainda não são cinco da tarde.
Já provavelmente sentindo o açúcar a nadar-lhe pelas veias, o padre Antonino deixou-se cair para trás, suspirou um suspiro ensonado de satisfação pecaminosa e coçou a barriga. Inspirou custosamente pelo nariz, limpou a gordura da ponta dos dedos nas abas da sotaina e arrotou um

 

- Faltam-lhe um cálicezito de aguardente

 

lambeu os lábios, entrelaçou os dedos por cima do ventre inflado e deixou que as pálpebras se fechassem. Bendito o povo que traz um embaixador do senhor tão bem tratado.

 

Acordou de súbito o padre Antonino, num sobressalto que fez a secretária tremer, já o feiche de luz ia alto na parede da sacristia a dar as quase oito da noite em toda a sua sabedoria solar da posição das coisas emparelhadas com o tempo. Desnorteado, esticou o beiço inferior e tirou a custo, do bolso direito escondido por debaixo dos paramentos, um lenço de algodão ao qual deu de beber o suor da testa, destilado por meios de um sonho atribulado e incoerente onde lhe haviam falado blasfémias e sacrilégios.
Retomou o fôlego, ainda com o fronte vermelhona do esforço e do susto, o papo gordo a tremer tanto ou mais que as mãos, rodou o corpo sobre si próprio o mais que conseguiu, esticou-se a pele encortiçada, com a barrigona de tamanho a fazer de obstáculo, estalaram vértebras neste movimento brusco da vida parca de exercícios que é a clerical, duas gotas de vigor caíram no chão todo em pedra da sacristia, os dois olhos confusos do padre Antonino subiram vagarosamente para o altar, abertos como se puxados por um par de grampos, passaram pelas rosas encarnadas e milagrosas da diligência vocabular da rainha santa, pelos pés descalços, empedernidos e pálidos do santo antónio de tonsura ao léu e menino decapitado, pelo pó que assentava nos joanetes do mártir. Enfim ganhou coragem, inspirou com força retesando os lábios e os músculos da testa agora oblíqua e olhou o cristo nos olhos.
Ele, coitado, lá estava como sempre, de braços abertos como quis a fatalidade, aquele jeito de molejo parado sem jeito de ser, um olhar perdido a fitar coisa nenhuma o tempo inteiro, a expressão sofrida de quem acaba de ser crucificado - elementar, meu caro - todo ensaguentado, despenteado e mal achado, com a barriga colada às costas e as costelas toda salientes a lembrar uma concertina e o padre Antonino agora olhando-o.
Lembrou as vozes distorcidas do maldito sonho, persignou-se três vezes sem pestanejar e começou a recitar um padre-nosso entredentes. A sua expressão tornou-se então numa de credulidade ingénua, como se tivesse visto a luz ou lhe tivesse descido ao intelecto a epifania das epifanias, arquearam-se-lhe as sobrancelhas num acesso de dó e, sem querer, deu por si a dar razões às vozes na sua retórica mental e pediu perdão a deus na terceira pessoal como se tivesse culpa daquilo que a mente exila no subconsciente - e se, realmente, as chagas de cristo já tiverem sarado ao fim de tanto tempo e ele só mantenha aquela cara de poucos amigos porque tem comichão nos sovacos?
Deus nos perdoe.

publicado por Gualter Ego às 18:32 | link do post | comentar | ver comentários (2)
Quinta-feira, 06.12.12

O ano da morte deste e daquele.

A ironia mais fecunda da vida é a realidade em toda a sua dinâmica. É nossa até à hora derradeira em que deixamos de estar - não há mais nenhuma que possamos conhecer que não esta. Porém, ao morrermos ela continua. No fim, saibamos que não somos necessário ao real das coisas. Somos um seixo no vau de um rio; podemos, até, presunção e água benta, já dizia a minha avó, achar que o caudal se desvia por causa nossa. Súbita vem a morte e joga connosco ao ricochete. Estralejamos a silvar na superfície e quedamo-nos para lá da margem. Nada mais. Por tal, estando a morrer, saibamos, quase maliciosos, deixar-nos ir.

publicado por Gualter Ego às 17:55 | link do post | comentar
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