Estava um homem a mijar na berma da estrada. Na cabeça cansada, formulou-se o seguinte relato:
Estava um homem a mijar na berma da estrada. Temperava o pavimento com o aquele mijo dourado, sem vergonha nem sentido de privacidade. Estava o homem a soltar-se mesmo ali, na beira do caminho. Onde passam carros e pode passar toda a gente. Despejava o que sobejava das entranhas no rail de preto e amarelo listrado, com o mingalho flácido de fora mais os trastes rugosos e peludos a pender que nem badalos, que falta de decoro, esta gente. Sacudiu-se e caiu-lhe uma lagrimita de mijo na calças castanhas de bombazina pálida. Não olhou para os lados. Não tinha qualquer sentido de pudor. Apertou as calças, puxou a braguilha para cima, zzzt, enfiou a camisola para dentro das calças e apertou o cinto de couro estragado, vincado, deslavado. Continuou sem olhar para os lados. Voltou-se. Veio um carro e ceifou-o. Atirou-lhe o corpo desamparado para quase longe. Medidas que as velhas beatas exageram de janela em janela.
Ninguém lhe foi ao velório. O senhor da funerária poisou uns poucos crisântemos à cabeceira do defunto e acendeu umas velas dos lados do caixão. O morto lá estava, solene, no melhor fato que se arranjou nos arrumos da caridade do convento. Ebúrneo todo de face, como ditam as biologias. O senhor da funerária ajeitava as fímbrias da seda que pendia do caixão. O cangalheiro estava sentado numa cadeira ao canto da casa mortuária, com a cabeça cansada apoiada num punho sujo e cerrado. Era gordo e atabafado. Tinha as peles do pescoço umas sobre as outras, como camadas. Fedia a suor e a carrascão. O senhor da funerária decidiu-se
- Bem, se não está para vir ninguém, tratamos os dois do enterro que é uma pressa
O cangalheiro, cansado e resignado, encolheu os ombros fechando os olhos, já tem a cova aberta desde de manhã quando acordou, mais depressa isto se despachar mais depressa retoma a sua partida de levantamento do copo. Resmungou entredentes umas onomatopeias, já estava um pouco zonzo do tinto, um bocado birolho de sono, uma coisa dá na outra, levantou-se coxeando da perna direita, ai o joelho, podia ter sido o próximo Águas, dizia ele quando a apanhava bem apanhada, podia ter sido o próxima Águas mas fodi este joelho todo num acidente de motocicleta quando era moço, começou de ajudar o senhor da funerária, também gordo, também atabafado, mas sem papos de queixo nem camadas de pescoço nem cheiro a cavalo nem quase bebedeira, vestido de fato preto e gravata preta e camisa branca, engomada de manhã pela excelentíssima esposa, florista na porta ao lado (meus amigos é assim que se fazem riquezas, um ajuda a enterrar e o outro adorna o luto, é assim que se fazem riquezas), a fechar o caixão e a metê-lo a custo no carro funerário. Pensava o cangalheiro que era uma pena esta madeira de pinho envernizada ir servir de atrito aos vermes e às larvas, desfazer-se na pasta de merda em que o corpo ele próprio se iria desfazer, torcer-se e remoer-se com o frio da terra e o libertar dos gases, não o pensou deste modo não tinha cabeça para tanto, pensou que era uma pena esta caixa de madeira que podia servir de espelho, e que deveria valer mais que a sua velhinha zundapp, ir para debaixo de terra onde ninguém a pode ver servir de caixa de sapatos a um monte de ossos.
Seguiram em passo solene, o senhor da funerária a guiar o carro e o cangalheiro a fazer de procissão atrás, uma procissão de um homem só, onde se já viu tal tristeza, nenhum homem fez mal suficiente ao mundo para ter só a força do dever a oficiar-lhe o enterro. Nem veio padre nem diácono nem houve missa de corpo presente, lá terá o cangalheiro que rezar uns padre nossos entre pazadas de terra húmida.
De súbito, o ar ficou frio e pesado. Pensou o cangalheiro que fez bem em ter vestido um casaco de manhã. O céu começou a fechar. Curioso, amanheceu um céu tão limpo, nem rasgão de nuvem nem ponta de caroujo. O céu ficou negro de tão cinzento e ameaçou rebentar. O senhor da funerária estacionou o carro funerário de cu para os portões verdes altos do cemitério, tirou o caixão mais o cangalheiro para cima de um carro de rodas de pernas delgadas e ferro frio, como se fosse uma maca daquelas das ambulâncias que se retraem e se prendem sem esforço. Levaram o caixão até à campa, uma campa rasa, sem luxos nem comodidades, sem jacuzzi nem tv por satélite, sem bidé nem cama de casal, era só uma campa, sete palmos mais ou menos bem medidos
- Vamos a isto então
disse o senhor da funerária. Passaram duas cordas por redor do caixão por mor de o baixar à cova, seguraram com força e vigor e trataram com o mais cuidado que dois arcaboiços de pança inchada conseguem ter com coisa de tal envergadura. Ganiram e gemeram um bom bocado, porra que pesava mais só o caixão que o defunto.
O senhor da funerária sacudiu as mãos limpas uma na outra, o cangalheiro queixou-se do joelho enquanto agarrava na pá. Espetou-a no monte de terra solta e fresca que havia feito de manhã, crivou-a com a sola bruta do sapato, agarrou o cabo com a mão esquerda inchada escarlate de frieiras e a terra fez um som de onda a bater na areia, caindo no caixão. Nesse momento, as nuvens abriram-se em tempestade.
Choravam os céus.
Cada vez que um homem morre, acaba-se um mundo.
Quando eu morrer, acabando o mundo para mim, pode acabar também o vosso.