Quinta-feira, 10.02.11

Bom dia.

Era por causa daquilo que ele acordava, todos os dias úteis, às sete horas e vinte minutos da manhã: o despertador. Olhava-o, pestanejando compulsivamente, como se a fraca e reticente luz que entrava pelos poucos-mais-de-uma-dúzia de buracos do estore velho, branco sujo e gasto, o cegasse, mais que cegueira de noites mal-dormidas, mal investidas, e, tudo o que se passou naquela noite, ele não se recorda.

Olhava-o, ao despertador, que, pela lógica da distribuição dos traços, marcava oito horas e trinta e três minutos, em rasgos vermelhos de numerologia aleatória e egoísta, - passado será o que será isto após alguma coisa, e todas as coisas que ficam, ficam no passado, no limbo das memórias, das marcas, das história, dos escriptos e dos escritos, de tantas e tantas coisas, dos Imperadores e dos Conquistadores, os Reis e os pestilentes camponeses, e a palavra anterior, por te teres entregue a lê-la antes desta, é o passado - e tudo estava calmo. Nada se mexia. Nenhum respirar se fazia ouvir. Lá fora, nenhum ramo de nenhuma árvore nua se dava em rédeas ao vento. Nada bulia. As ruas estavam desertas, nem viv'alma nem alma morta, nem cão vadio, nem mosca, nada passava, nada tocava o chão, nada olhava, nada se tocava. Até que a última folha que restava da Primavera se soltou do ramo impertinente, baloiçou num doce baile de resistência ao ar, que até a física cabe na mais bela das prosas, se cabe nos dedos, cabe também aqui, e a folha continuou a cair, demorada, tomou o seu tempo, como que sustendo a respiração, como aquele fugidio e deveras curto momento antes de te tocar, antes de te beijar, antes de cair, antes de mergulhar, e soltou o ar, deixou-se, então, cair, deu de si ao chão, levemente, e nenhum som se ouviu. No exacto momento em que a folha tocou o asfalto áspero, molhado das noites de precipitação das chuvas e das carnes, também o homem tocou em algo: o amável, cheiroso e cinzelado pescoço de quem tinha passado consigo a noite.

Oh, como cheiram bem as carnes noviças, intocáveis, impalpáveis, inocentes e brancas, mais que isso!, imaculadas, até eu lhes chegar, e serem um objecto quase daquilo que se vai escrevendo, sem um espaço, apenas aquilo que lhes dedico.

A dama suspirou, lentamente abriu os olhos e sorriu-lhe; nunca se havia visto sorriso tão bonito, brilhante, branca tez, como pérola, é a cegueira de ver aquilo que se ama, como se Afrodite se tivesse poisado nos nossos braços e no nosso leito, e tivéssemos feito amor com ela; e o dia continuava tão escuro.

Bem que se ouviu, Bom dia - disse ela - com reticências materiais. Bom seria o dia, se a noite nunca tivesse acabado.

publicado por Gualter Ego às 19:24 | link do post | comentar | ver comentários (3)

Chaga de Outono.

Dói-me toda e cada célula,

Sinto, latejando, cada cabelo,

A roupa achegada ao pêlo,

O frio, o olfacto, o fumo,

Rebolando na pressa de chegar a casa,

Cavalgando nas memórias dos Outonos da suja e pura infância;

Os Outonos que foram de tempos em que eu já não sou:

Este Inverno é o Outono que chegou.

 

É rara a vez que minto,

Por isso te digo,

Todo eu sou chaga,

Ferida gangrenada do cansaço de estar,

Sem saber se sou quase um espaço,

Ou quase uma coisa,

Todo eu choro,

Todo eu doo,

E nada sinto.

 

Amanhã,

Quando o sol nascer,

Torno a morrer.

publicado por Gualter Ego às 18:16 | link do post | comentar | ver comentários (2)
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