A Morte Precisa de Amigos
Prelúdio
Ele sabia, apesar de não ser homem da filosofias e gostar de coisas absolutas, se as houver, que por estar vivo, está, perpetuamente, morrendo, porque a vida assim se faz, vivendo em contagem decrescente, para uma hora que estará marcada num calendário qualquer que seja, mas que nos é alheia e desconhecida. Sabemo-la, mesmo sem saber que ela lá está, a tal hora, e vamos queimando a nossa vida em função das coisas que são só coisas, das mulheres, que são só olhos, lábios e seios, dos homens, que são só paleio, do tempo, que é apenas uma mescla de números, para trazer ordem ao caos, para nos prender nas formalidades, nos tenho que me despachar que ainda chego atrasado et voilá, inventou deus os dias, os meses e os anos, colocou-nos no meio do universo, para que o sol nos possa cortejar, durante o dia, e a lua, durante a noite, inventou a terra e os céus antes de criar a luz, talvez isso explique os acidentes geográficos a que chamamos a beleza da mãe natureza, inventou-nos da terra, moldou-nos no barro e soprou-nos, para depois à terra voltarmos às mãos da maldita Morte, maldita, malfadada e mal-falada, coitada, não faz mais que o seu dever eterno, inventou-nos o caminhar, a ansiedade, e os relógios, para que o homem pudesse inventar a pressa. Somos uns filhos bastardos feitos à sua imagem e semelhança.
Deixando as narrações da criação divina de parte, aos supremos e omnipotentes discursos voltaremos, afunile-se, agora, esta história para dentro deste quarto que aqui vedes. Os calendários humanos, pelo menos conforme o credo da personagem que se encontra deitada na cama deste quarto, contam mil novecentos e setenta e um anos após o nascimento humano do filho de deus, saído de um útero imaculado e divino. Certo que deus e a Morte, que serão o mesmo, se não o forem, serão irmãos, já se esqueceram da sua própria idade, nem se lembram de quem os pariu, e com toda a certeza que a nossa visão diminuta do tempo não lhes servirá, que a eternidade não pode ser medida a contra-relógio. É quase noite. As trevas vão cobrindo o fumo das chaminés, casa a casa, janela a janela, tijolo a tijolo, e há uma nuvem densa e escura que teima em não descobrir a lua, que esta noite está cheia, que regula os cios dos animais, as marés, e há quem diga, sabedoria materna não se pode duvidar, que é na lua que, se ao fim do tempo, os nove tradicionais meses, o bebé há-de nascer, eu cá nasci exactamente numa lua cheia, gracejos à discrição.
Está escuro demais, diria quem passasse na rua. Pois será na rua a escuridão insignificante, que toda a escuridão e treva do mundo, tem este homem no peito, Jean-Baptiste, de nome e certidão de nascimento. E, coitado, não consegue suportar a visão que é o fundo do copo. Vai de encher até ao cimo, esvaziá-lo quente na goela ardente. Escrevinhava palavras soltas atrás da máquina de escrever, sentado numa cadeira que guinchava ao menor movimento, voluntário ou involuntário, dos músculos deste nosso personagem, ou dos espasmos repentinos que lhe asseguravam a confusão do lume no pavio, das letras que martelava sem motivo e das fotografias das actrizes de cinema francês, batom vermelho, perna descoberta, cabelos a lembrar as volutas jónicas das antiguidades, rodando pouco acima do ombro, que tinha coladas na parede perpendicular à cama minúscula onde dormia, ou fingia que dormia. Há muito tempo que não rimava. Tinha o soalho do quarto calafetado de folhas amachucadas.
Há muito tempo que não sabia o que era o calor de uma mulher, o cheiro de uma mulher, o suor de uma mulher. Há demasiado tempo que não sabia o que era uma mulher. Depois de mais um trago de gin amargo, escreveu no canto de uma folha: "Não choreis por mim falecido, que eu chorei o bastante pelo eu nascido. Jean-Baptiste Durieux." Feito isto, alcançou uma gaveta, abriu-a e tirou de lá um revólver. Encostou a ponta do cano da arma à têmpora e pressionou o gatilho. Menos de um segundo após tão trágico e imoral acontecimento, a Morte estalou os dedos e tudo o que era vivo pereceu.
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Dali podia ver até à linha que o mar traçava, recta, supostamente, e imóvel, no horizonte. Os tradicionais e intemporais mantos negros, sujos, grossos, pesados, desfiados, arrastando pelo chão, fazendo as plantas murchar se lhes tocava, e os ossos, chocalhando a cada passo, na branquidão suja do cálcio ao ar livre, passaram a ser vestido de seda e carne rosada.
Apoiava um cotovelo no joelho, e o queixo na mão esquerda, sentada num rochedo, no cimo de uma arriba e, de vez em quando, suspirava, entre tragos negros de tabaco, humano, mortal, sim, mas hábitos são hábitos e há alguns que nunca morrem, vícios são vícios e são difíceis de deixar e, afinal, a carne ainda continua a ser fraca. Não havia ninguém para matar há meses. Nem homem, nem mulher, nem gato, nem cão, nem sequer um mosquito ou uma bactéria. Nada, apenas a Morte restava. Suspirava de saudade. Sentia falta dos crânios esmagados contra o cimento duro, ou contra o asfalto negrume, de guiar uma e outra bala perdida, de já não haver ninguém que se matasse por um nome divino, nem que matasse meia dúzia de pobres almas, por alá, por deus, por quem quer que fosse, que isto é um conto, quanto muito uma história, não é ficção científica.
Acabaram-se os dedicados pais e esmerados maridos, acabaram-se as flores de campa no primeiro de Novembro, o sangue das guerras, a chaga das doenças, o empodrecer das entranhas, todo o ritual de baixar o caixão à terra, que deus o tenha na sua mesa divina, e lhe dê pão e vinho canibalesco, a certidão de óbito, o carimbo; se houve tempo, a santa unção, se não houve, um último Padre-nosso pela sua alma. Lembremo-nos que nem as larvas restam. As moscas, a última das criaturas a morrer, aquelas normais, que por vezes têm o desplante de poisar em sítios inadequados, de trazer por casa, ficaram fartas e de barriga cheia, até que pereceram também.
Os nós de enforque iam-se desfiando, as facas ganhavam ferrugem, mais nenhuma mãe pariria um filho só para depois ele morrer. Os nossos verdadeiros assassinos, a causa da nossa morte, são nossos pais, que nos deram a vida. Talvez tenha sido uma vingança da Morte, tudo e tudo morrer, mesmo o que era tudo sendo pouco, por ter, ao longo dos tempos, ficado com tão má reputação entre os homens, que são os únicos que sabem que mais que viver, há que morrer. Talvez um capricho; porque não? E, agora, a Morte estava sozinha. Restava-lhe esperar que o Inferno estivesse de lotação esgotada e que quem quer que esperasse a entrada, tivesse que dar meia volta e deambular pela terra, até achar um sítio bom para nascer de novo, se não estiver a chover. Poderá ser falado que a Morte achou na solidão, a própria estupidez, porque até agora não se soube porque fez ela isto, de matar tudo o que tinha ao seu alcance, nem quer ela por fim dizer ainda, para fazer crescer a ansiedade, que os filmes bons são-no, muitas vezes, por culpa do último quarto de hora. Sabe-se que matou, vulgo fez o que sempre tem feito, mas à inteira extensão da humanidade e dos restantes seres vivos de uma só vez repentina, porque assim lhe apeteceu, por agora, e que agora se arrepende, por ingenuidade, por estar tão sozinha.
À gadanha, perdeu-a, era uma tecnologia rústica demais para as mortes de hoje, por isso não lhe fez luto. Ficou perdida, para os lados da Ásia, que por lá nascer muita gente também houve que ceifar outros tantos e por meio de gangrenas, infecções e degolações a gadanha foi esquecida, encostada a uma parede. Após tal infortúnio, e indo contra as tradicionais representações dela própria, a Morte, como qualquer mulher que se preze, passou a matar apenas com a frieza do olhar. Desde já se faça a despistagem de confusões: a única coisa que existe e é absoluta, é a Morte. Deus já o foi, mas contradizendo Sartre, a morte é, enfim, o facto com maior valor ontológico que se conhece, e tudo o que existe, o é por ir morrer, por estar fadado a terminar, cessar. (Julgo que o ser humano enlouqueceria se não estivesse a sua morte marcada numa qualquer agenda transcendente.) Há uns anos, Deus chamou a Morte a um canto e disse: - Vou mandar um filho meu à Terra. Não te acanhes em fazer o teu trabalho, só por ele ser meu filho, quando lá chegar a hora. E, o resto, nós já sabemos, uma cruz, três pregos, e um suspiro, tudo o que é homem morre, só que este ressuscitou ao fim de três dias, disto não tinham avisado a Morte, e voltou para a mesa do pai. A morte sentiu-se, genuinamente e com todo o direito, ultrajada, por fazerem tão pouco do seu ofício. Já tinha estranhado, quando esse dito Jesus fez voltar a respirar um conhecido dele, de nome Lázaro, só com a força das palavras, mas isso ela deixou passar, que, como eu já disse, tudo o que é homem morre, e este morreu duas vezes, o que até agradou à Morte, de uma maneira escondida e de soslaio. Se Deus criou, a Morte desencarnou.
O modus operandi da Morte é incerto, até porque para ela, o que importa é o efeito, o fim, e não a causa, os meios. Não lhe importam testamentos, não lhe importa o velório do quase morto acamado, não lhe importa se aquele astuto homem que aqui vemos, de fato e gravata, de pasta na mão, que vai a sair do trabalho, tenha uma família para governar, desde que o que foi escrito se cumpra e aquele carro que lá vem ao fundo não pare no sinal vermelho e o atropele. Importa, sim, que aquela pessoa que tem como data da morte, nos arquivos divinos, aquela hora e aquela mesma, pereça ali, com ais e uis ou sem eles, sem demoras nem atrasos. É um trabalho sujo, mas alguém tem que o fazer. A Morte está a perpetuar a sua condição de mulher. Isto é, de pessoa humana, visto que está neste momento a oficializar o seu aborrecimento por nada haver que fazer e mais porque o que está por fazer teima em chegar. Está a fazer algo que não deveria ser feito pelas entidades que estão acima de tudo o que estiver abaixo deles. Está a atirar pedras para o rio. Está a pensar em como teria sido divertido se tivesse matado a Humanidade, homem por homem. Sádico sentido de humor tem esta morte, arrepende-se de não ter feito isso, e pensa em como seria maravilhoso ter morto primeiro os coveiros, melhor nome lhes seja dado, cangalheiros, soa melhor na língua, escorrega-nos por ela a fora e vai acariciar o céu-da-boca, e só depois matar os restantes mortais. Sim, a Morte agora está a sorrir de orelha a orelha. Porém, ver a Terra assim, vazia, só com a poeira de um lado para o outro, sem peixes no rio, sem bichos na terra nem pássaros a voar, obriga-a a engolir em seco. Tantas obras-primas que ela fez, primeiro, sussurrou no ouvido de Caim, passou nas cortes dos imperadores, ajudou a cravar a faca d’O Estripador e agora, esta, a sua maior obra-prima, a sua magnum opus, não me canso de a referir, parar a respiração a tudo o que vivo era, para deixar de ser. Há uns anos, a Morte resolveu experimentar, pela primeira vez, o que era estar dentro do saco de carne a que chamamos corpo; estávamos perto do solstício de Inverno no hemisfério Norte e os corpos andavam tapados de tecido até às orelhas.
Desceu-lhe ao corpo feito espírito santo, não se lhe sabe é por onde entrou, e tomou-lhe os movimentos, os pensamentos, e a voz. Sentiu o quente e o frio a estrear, a seda macia da gravata que pôs ao pescoço, deduza-se que desceu a um corpo masculino, o quente toque áspero da malha do casaco. Desde que se lembra, que tem observado os homens de primeiro plano, por isso sabe o que é um frigorífico, uma cama, para que servem as sanitas e as escovas de dentes, todo esse role de formalidade rotineiras que tomamos como garantidas. Abriu o tal frigorífico, olhou-o de cima abaixo, tirou de lá um queijo. Cheirava horrivelmente mal, por isso havia sido tão caro, tinha o preço colado na etiqueta central redonda. O queijo é uma coisa magnífica, é um processo bacteriológico, basicamente, o que para alguns deveria ser suficiente para os repugnar, e ainda há quem os coma com bolor. Parece que na França há um queijo para cada dia do ano. Talhou uma fatia e levou-a à boca. Era inútil estar a comer, ela não precisaria, mas não resistiu a provar o prazer humano de degustar algo que seja caro e refinado, mesmo que saiba a ranço. Chovia. Pegou no chapéu-de-chuva e saiu. Durante algumas horas andou pelas ruas sem saber o que fazer. Limitou-se a andar. Tal como lhe era inútil comer, também não se cansaria, nem sentiria sono. Tinha descido à terra para experimentar. O frio sentia-o no tacto apenas, mas apertava o casaco contra o peito, talvez fosse o instinto humano que ainda se conseguia cheirar naquele corpo. A Morte estava orgulhosa da figura que tinha escolhido. Era um homem que vivia sozinho, num apartamento razoavelmente luxuoso e bem decorado, era alto, de costas largas, forte de ombros e braços, um homem de carnes duras, cabelo negro brilhante, a cair ligeiramente em franja pela testa, na diagonal. Os seus olhos eram pequenos, esguios, de um azul pálido em que a dama mais ingénua se deixaria agarrar sem luta, a linha do queixo era agressiva e bem definida e a barba de dois dias favorecia-lhe o olhar de predador. Era, sem dúvida, um homem bonito, elegante e atraente. Seria fácil, para a Morte, assim disfarçada, de levar uma mulher para a cama. Era para isso que ali estava. A Morte era virgem. Observava as pessoas que passavam, parada num passeio. Nenhuma delas lhe causava o menor efeito. Eram pessoas cinzentas, olhavam o chão no passo apressado.
Já não há felicidade, já não há dignidade. Vê-se o ser humano beber às mágoas, sorrir à felicidade solitária, supérflua e banal e bocejar à frente do corpo despido, de tão gasta que está essa imagem, aos olhos de quem a vê. Vê-se o Homem criar ideais obsoletos de beleza, autoridades imorais, instaurar o certo e o errado, tentar definir o amor, encontrá-lo nas coisas, amar essas tais coisas e usar as pessoas. Enfim, tudo o que um homem quer, é estar com uma mulher, ou em cima de uma. Mas não é assim que se passa com a Morte. A Morte vê o amor nas poças de sangue encarnado vivo, vê as promessas de paixão eterna serem confessadas a cada tiro, cada facada, cada gole de veneno. Deus escreve a direito por linhas tortas, a Morte escreve um soneto por cada último respirar, por cada último pestanejar. Esta noite vai ser derramado sangue. Já estava de noite. Entrou num bar, interpelou uma rapariga. Devia ter os seus vinte e cinco, vinte e seis anos de idade. A Morte pagou-lhe um copo, dois, três, foram conversando e rindo, que a Morte tinha preparado o discurso, quatro, cinco, já se ouviam elogios mútuos, a Morte fazia uso dos seus pecaminosos olhos azuis e das palavras ataviadas para a fazer chegar mais perto de si, seis, sete copos de uísque e lá saíram juntos, a rir. A Morte levantou a mão para chamar um táxi. Já a caminho, dentro do táxi, a Morte avançou e beijou a mulher, pôs-lhe a mão debaixo da blusa, a outra na face, começaram assim os preliminares, qual batedor das antigas guerras, até onde se poderá ir, quão longe a nossa mão é permitida viajar no mar deste desleixado e incontrolável corpo. O trote continuou no elevador do prédio, no hall de entrada do apartamento, roupas foram despidas, corpos atirados à cama. Agora sim, a Morte vai saber o que é ser homem e provar o lânguido paladar de uma mulher.
Eram dois corpos, dois pares de olhos apegados um ao outro. No reboliço do amor sensível ao toque, aparentavam, agora, ser apenas um, um corpo que vive separado e desencontrado, na perpétua busca da individual metade. Na verdade, ali eram quatro, a mulher, que valia por duas, faça-se disto um acto consumando à luz dos instintos animais restantes na nossa génese ou a fome carnal dos rituais humanos do saciar dos desejos, debaixo do homem, e da Morte que estava dentro dele. Ali se fez o que sempre foi feito, escravos ou majestades, sejam camponeses ou burgueses, na cama, no cagar e na hora da morte, todo o homem é igual. No escuro, trocaram-se as salivas, mudaram-se as posições e os estatutos, gemeram as vozes, doce prazer que é este, sejamos homens e mulheres afortunados em tal dádiva, qual pecado, seria pecado privar o nosso próprio corpo de tal deleite. Por fim, depois das voltas incansáveis nos lençóis, desceu o prazer ao corpo, contraíram-se os músculos, fincaram-se unhas, deitaram-se os corpos, lado a lado, seriam homem e mulher como sempre foram, se a mulher não tivesse acabado de ter feito amor com a Morte feita carne. Diriam os poetas, mulher é morte por ser mulher, pois bem, calem-se por uns momentos os poetas, que a Morte vai talhar o amor à sua maneira. Deixou a mulher nos seus resguardos descansando dos trotes tradicionais e dirigiu-se, ainda nua, antes direi nu, porque é o corpo que à nudez vale, à cozinha de sua própria casa, alcançou uma gaveta e tirou de lá uma faca. Apresentou-a à luz exterior, fê-la cintilar, para lhe apreciar melhor a lâmina, cerrou o cabo no punho e caminhou para o quarto sem vacilar. Tomou-lhe o corpo como uma nova aproximação às lides, esperaria ela uma segunda ronda, subiu em lábios por ela acima, sorriu-lhe ela em consentimento, novamente a Morte dentro dela. Levantou o punho onde tinha a faca como uma confirmação de que ali se fazia justiça, mesmo que fosse por recriação, à culpa de terceiros, continuava a mulher com os olhos fechados, tanto vigor tenha este corpo porque a Morte é absoluta, porque a Morte o possuiu, para lhe dar força, seja àquilo que querem as mulheres, seja ao braço que agora desce, em câmara lenta. Culminou a lâmina fria na carne aquecida, fez resistência, a pele, ao ser violada, sujou de sangue as mãos, pela primeira vez a Morte. Nunca tinha sentido nada tão quente, tão bom, tão visceral, tão lancinante, tal deleite. Repetiram-se as facadas até que a mulher não teve mais grito a dar, mas suspiro, mais pestanejar. O homem, vulgo a Morte, chafurdava agora numa poça encarnada que julgava ser o amor. Sorvendo das mãos em concha, provava-lhe o sangue, ainda quente. Orgasmo é o empalidecer da carne e os olhos vazios. Abraçou-se a Morte ao cadáver da mulher, beijando-a repetidamente nas faces. Sabia a Morte, sabia-o ela bem, agora, que tinha no Homem mais que objecto, por mais que lhe mostrasse que nascer é vir ao mundo com os pés na cova. A Morte tinha, e tem, no Homem, o seu mais perigoso e sádico concorrente.
A Morte suspirava agora na fogosidade da brisa primaveril que lhe fazia esvoaçar os cabelos de dama inocente, à custa de tais lembranças de tão bons e humanos tempos, em que ainda havia vidas para ceifar. Verdade que só ela sentia falta dos movimentos, dos metabolismos, de sorrir com ironia a cada bebé que vinha ao mundo, o restante e orográfico mundo continuava tal qual como era. As montanhas estavam por lá, neve vem, água vai, as pedras não choravam como dantes faziam, se por aí se finassem outros Romeus, no fado suicida de uma qualquer formosa Julieta, as nuvens continuavam a passar, claras ou escuras, altas ou baixas, deitando à terra a chuva ou não. O vento, esse, e o vento sabe tudo, diz-se que passou a soprar com menos força, porque já não havia casas de senhorio para deitar abaixo.
Perguntar-se-á alguém, certamente que sim, onde fica o Diabo neste enredo de desfechos duvidosos. O Diabo não fica em lado algum. O Diabo, Lúcifer, Belzebu, como queiram chamar-lhe, é uma personagem desafortunada de uma história que os velhos contavam para assustar as crianças, um pouco como o Papão. Por isso se fizeram homens fortes e bravos neste nosso ameno e pacífico Portugal, era da sopa comida a medo. Uma coisa será certa, muita vez me disseram que deus castiga e, se deus assim pode ser mau, não sou eu quem o diz, por assim dizer, está no Antigo Testamento, e tudo criou, não se percebe porque terá ele criado alguém para mandar nas Trevas, se de algo que é perfeito, dizem, saiu o Homem, imperfeito até ao tutano da alma, e de alguém que é infinitamente bom saiu a génese do mal. Algo aqui está muito mal contado.
Se tivesse relógio no pulso, a Morte estaria, neste momento, a decifrar a direcção dos ponteiros, mas como o tempo nada vale aos dias sem gente, nem a Morte precisa de apetrechos descartáveis para saber que há algo que tarda em chegar.
O sol ia descendo pela tela celeste, tornando o azul claro num índigo palpável, reflectindo tons de laranja nas nuvens esguias e esticadas na linha do horizonte; fazia-se noite a passos largos. Será o ovo ou a galinha, não se sabe, mas tudo o que é vivo, tem de morrer, nem que se seja o criador de tudo o que é visível e invisível. O problema, é que o criador, o nosso amável, astuto e impertinente arquitecto, está atrasado.
A Morte põe-se a pensar, não há nada mais que possa fazer, neste marasmo impenetrável das horas que já não o são: ...ninguém está vivo. Certo, matei tudo o que estava vivo, mas não é isso… Nunca se pode estar verdadeiramente vivo. Rompemos a inexistência ao anulá-la no dia em que a nossa mãe, a deles, nos dá à luz e tornamo-nos existentes, porque, para trás, existia o nada, nenhuma memória alheia de haver alguém que fosses tu. Existes, penses ou não, simplesmente, estás existindo. Assim como só podes saber o que é o frio, se sentires calor, ou vice-versa, é preciso morrer para saber que se está vivo. Sim, o verbo estar no presente do indicativo, então, não faz sentido, portanto, só podes clamar que estavas, pretérito imperfeito, vivo, quando morreres. Nunca estás vivo. Estiveste vivo, - a Morte sorriu, fez uma pausa, suspirou, achou-se demasiado íntima às dores humanas, mas prosseguiu - há as memórias que deixaste; não podes dizer que uma árvore fez barulho ao cair, se não estavas lá quando ela caiu, dizendo que as deixaste, que um grupo determinado de pessoas que te influenciaram e pelas quais foste influenciado, se lembra de ti. Para eles, tu estás vivo. A morte é tudo: paz, certeza, fado. Existir sem morrer, contrariando todas as leis que se pretendam enunciar, não é viver, é um prolongamento hipoteticamente egoísta do achar que se vive. A Morte encheu-se de orgulho, mãe, pai, eu sou o sentido da vida.
Por abraçar o fardo da existência que ela mesma teimou em finar, depois de várias discussões com ela própria e com os botões da blusa cuja seda já não sentia, tomando a decisão de ceifar a vida das coisas todas, impor o caos mais calmo de toda, uma anarquia que é como uma brisa de ar quente na Primavera, como negar uma chávena de chá quando em Inglaterra, uma confusão silenciosa. Mas tudo isto era demasiado angustiante; a pele humana que lhe fazia comichão no orgulho e na dignidade começava a apodrecer, a cair como a tinta de uma parede velha. Achegou-se a uma árvore e sentiu-lhe a casca. Esta laranjeira terá que servir. Estalou os dedos e uma corda grossa e áspera apareceu-lhe aos pés. Torneou-lhe as voltas e fez-lhe um nó numa ponta, folgado num palmo e meio, subiu a uma pedra de tamanhos suficientes para o trabalho não sair mal feito, abanou um ramo, pareceu-lhe demasiado fraco, abanou outro, este sim, parece-me forte, e enrolou-lhe a corda até lhe parecer bem, atando-a com força, puxando-a com os dentes, para não se largar. Ali ficou o nó de enforque pendurado, num limbo, flutuando nos últimos ventos, se ninguém deles sabe, ninguém os sente, não são ventos, que a Morte ia fazendo tempo.
Bem, terá que ser agora - disse ela. Baixou os olhos do céu e deu dois passos na direcção da laranjeira. Subiu à pedra, agarrou no nó com as duas mãos, fê-lo passar-se pela face com os olhos fechados e ajeitou-lhe a largura no pescoço. Inspirou e os céus cobriram-se de treva; expirou um bafo de tudo o que era vida, ar, angústia e temor, e o seu bafo podia ver-se como uma nuvem de sopro quente, que rompia o ar gelado da vindoura noite. Deixou-se cair da pedra. Estava, de primeiro, suspensa pelo pescoço, sem movimento ou reacção, eis que agora esperneia, leva as mãos ao pescoço, arranha-se em luta por um trago ínfimo de ar que algo tão facilmente corruptível como uma corda, coisa tão humana, como são os enforcamentos, tão humanos como desumanos, diga-se, lhe nega. Arroxeia-se a bela e pálida face de anjo que tomou aquando dos princípios desta narração, viram-se os olhos num branco pérola invejável até a Nossa Senhora, santa e imaculada. O pé direito parou de mexer, não deu mais de si em espasmo, esperneio, sinal de vida. A Morte estava, que a ironia seja imperial em tudo o que por hora ainda é vivo, morta.
Deus sorriu e apagou a luz.