Oitenta e um.
Fernanda, 81 anos de idade, mãos de quem trabalhou, olhos de quem já não tem lágrimas para chorar e sorriso de quem ainda tem gente para amar.
Chamo-a de Avó, e , de vez em quando, apenas e só 'Vó.
Estava sentada na sua cadeira de baloiço, uma cena bastante vista nestas andanças das histórias contadas por velhinhas, mas nem estava à lareira (era Verão), nem tricotava. Limitava-se a estar, ali, comigo, debaixo da latada coberta de videiras que já ostentavam, orgulhosas, os seus cachos escuros, a olhar os gatos, que iam saltando de sombra em sombra.
- Avó, tens quantos irmãos?
-Tenho três irmãs: a tua ti' Cacilda, a Cecília e a Maria Augusta, mas essa já morreu.
- Morreu de quê, 'Vó?
-Suicidou-se, coitada...
-Porquê? - perguntei eu, a receio, podendo estar eu a tocar num assunto do passado que não deveria voltar ao presente.
- Então... ela era a mais nova, nasceu em '45, e ela só tinha cinco anitos quando a nossa mãe morreu. Eu fui viver com uma tia-avó minha, que era costureira e me ensinou tudo o que sei hoje, desde coser botões, amassar pão e ordenhar cabras, a tua ti' Cacilda, que já era uma moça bem crescida, com os seus 20 anos, cabelo loiro e olhos azuis, que foi buscar à trisavó materna, mãe da mãe do seu pai, partiu para Moçambique, com o marido, para ver se arranjavam uma vida melhor e as minhas irmãs Cecília e Maria Augusta, ficaram cá na terra com o nosso pai.
Ela cresceu e ficou uma rapariga muito esbelta, de cabelos e olhos cor de mel, cintura fina e seios formosos...
-Oh 'Vó... - disse eu, meio desconcertado.
-Pronto, pronto, eu passo à frente. Dizia eu que ela tinha ficado uma rapariga muito bonita, e que, por causa disso, arranjou um partido muito bom. Era um rapaz de famílias não muito abastadas, dos lados de Leiria, mas que se vestia muito bem e conduzia um Mercedes com pintura metalizada, e que, quando cá vinha, não tinha medo de arregaçar as mangas e cavar um bom pedaço de terra, ou de enterrar as mãos na mesma e arrancar batatas.
O teu avó gostava muito dele e até dizia que as melhores bebedeiras que teve, foi com ele.
Esse rapaz e a tua tia-avó, Maria Augusta, nunca chegaram a casar, mas um dia ele partiu p'ra Moçambique, e até arranjou casa perto da tua ti' Cacilda, e prometeu que ia arranjar casa e trabalho, para se poderem casar e lhe mandaria um visto para ela ir ter lá com ele.
Ela esperou quase dois anos por esse visto, e calculando que ele nunca mais chegava, decidiu partir sozinha para Moçambique, para ver se o encontrava.
Quando lá chegou, e sabendo onde ele estava a morar, encontrou-o com facilidade, mas descobriu que ele já tinha arranjado outra mulher e que ela já estava prenha de seis meses.
Desconsolada de tal maneira, conseguiu ainda arrastar-se até casa da tua ti' Cacilda, onde ela lhe deu guarida, mas ao segundo dia de estadia, e como se tivesse estado a ganhar coragem naquelas quarenta e oito horas, tirou os lençóis da cama, amarrou-os uns aos outros e apertou essa corda improvisada ao pescoço, estrangulando-se a ela própria. O corpo foi enterrado lá e nós, como tínhamos pouco dinheiro, não podemos ir ao enterro.
A minha irmã Cacilda disse que ela estava muito bonita no velório, apesar das marcas no pescoço. Estava vestida de branco e, como tudo o que é pessoa morta, estava pálida. Parecia quase uma santa, disse-me ela.
Ainda bem é que não fui p'ra Moçambique com a tua tia Cacilda e fiquei cá, em paz e sossego, a coser meias e botões e a amassar pão, entre as mulheres cá da terra, que os homens são e sempre foram uns cães cheios de sede, que, se pudessem, respiravam fumo de tabaco e bebiam vinho em vez de água, como o teu avô. Mas esse, ao menos, sempre me foi fiel.
-Não sei como, sinto saudades do avô.
-Ele gostava muito de ti. Umas horas antes de lhe dar o enfarte, pegou em ti ao colo e disse:
"-Este rapaz tem as mãos grandes! Se não for p'ra guitarrista, vai ser um óptimo par de braços a sachar batatas."
Não disse mais nada.
Aprendi mais em vinte minutos de conversa, que em nove anos de escola.