Luto.

Há uma dissonância que me arrebata as têmporas como martelos. Há a interrupção dos dias que são do presente, e a massa recua aos tempos em que saber que se era não valia mais que um berlinde. Rolo como um, na poeira do chão, rodopio ao entrar no buraco da minha infância, daquilo que chorei, naquilo que era e que, por ironia ou vingança, quero voltar a ser. Carregam os dias uma intensa vontade de me precipitar em tudo o que poderá ser chuva, em tudo o que poderá, por não mais ser, ser ontem, como se ontem fosse o meu futuro, e não me lembro mais senão do que o futuro é o produto daquilo a que aqui me apresento. É, trocando de voz, uma profunda tristeza que por mim escorre, um profundo doer, sem saber. Tenho saudades do que está por vir e, por fim, vou ter saudades daquilo que morrerei sem ser. Morro a cada dia. A cada ano que passa, morre mais um pouco daquilo que eu verdadeiramente sou, se algum dia eu fui verdadeiro. Finjo. Finjo que respiro, finjo que ando, que acordo, que tomo banho, que como, que sinto. Nada mais é que que a sombra daquilo que eu quis ser, do rapaz que se esfregava no peito da mãe, em busca de um bater de coração, que afagava a barba rija do pai e procurava o sentido da vida nas rugas da avó. Oh, chorai comigo, se minhas lágrimas não forem o bastante para fazer o devido luto. Enterro, hoje, o menino que fui. Mas, mãe!, eu não quero ser um homem. Pai, oh, pai, eu não quero ser alguém...

Vou-me, fingindo; sou-me, em toda a graça e em todo o esplendor daquilo que a humanidade me fez, às portas do mundo ao qual eu fui parido, lançado aos bichos. Do buraco vim, quente, e materno, envolto em calores húmidos de amor incondicional. Ao buraco me vou assomando, a cada dia que passa, frio, sujo, vil.

Não serei nada mais que um intervalo entre aquilo que não era e aquilo que fui. Quando eu morrer, não façam luto.

 

 

 

 

publicado por Gualter Ego às 15:44 | link do post